Capítulo 3

É fato dizer que a tragédia toda não se deu na casa da fazenda e sim, na da cidade. Mas algo estranho me ocorreu ao entrar no banheiro da parte de baixo do sobrado. Não sou dado às crendices, como já disse anteriormente, contudo, me senti incomodado naquele lugar. O passeio se estendeu pelos jardins das cercanias e, aos meus olhos juvenis, me encantei com a fonte que ainda derrama suas águas pelo jarro da dama de pedra.

Tudo isso ainda vive em minha memória. Contribuiu para o cenário que pretendo montar ao reviver a trama dessas páginas transcritas por tia Eneida. Pego-me olhando avidamente para a foto da mulher morta ao lado dos dois irmãos, pensando qual seu papel no desfecho. Soube seu nome através de tia Eneida: Mercedes Medeiros, filha do Coronel Artur de Medeiros — noiva de Augusto. Por que seu fim trágico junto a eles?

Tantas coisas sem sentido envolvem esse caso. Mas estou determinado a juntar as peças e contar os últimos acontecimentos daquela noite de maio de 1930. O que me deixa angustiado é como terminá-lo, com tantas dúvidas apontadas por tia Eneida? Não sei se acharei a solução para tal fato depois de mais de oitenta anos. Poderia até criar um final, mas não seria justo para ninguém.

Estava entretido na leitura quando o celular tocou e, para meu alívio, ouvi justamente a voz de quem eu queria:

— E aí, gatão? Tava querendo falar comigo? — Perguntou a voz levemente rouca de Marina.

— Preciso de você.

— Manda.

— Preciso que me ajude num projeto. É coisa grande.

— Hum... Quão grande?

— Bastante. Acho que já te contei a estória da minha família, não foi?

— Entre umas cervejas e outras.

— Pois bem. pretendendo fazer um longa.

— Uau. Sério? Tem certeza? Quer dizer... Sua família vai gostar de toda essa exposição? Pelo que me lembro seus velhos tios tiveram uma briga e tanto por causa da fazenda, não foi?

— Foi, mas qual família já não brigou por causa de herança? Além do mais isso já faz mais de oitenta anos?

— Bem, sei lá. Velhas feridas às vezes não cicatrizam. Mas isso não é da minha conta. Você tem ideia do desfecho? Alguém sabe o que realmente aconteceu com eles? Como vai fazer? Onde pretende filmar? Vai usar cenário, vai ser in loco, e dinheiro pra isso?

— É aí que você entra minha querida.

— Eu sabia. Você só me procura para arrumar mais serviço, como se eu não fizesse nada o dia inteiro!

— Eu sei que é a melhor no que faz.

— Não para você, meu bem, que fique bem claro.

— Um dia, minha cara, a trago para trabalhar comigo.

— Como se isso fosse possível, além do mais, você não faz o meu tipo.

— Vai me ajudar, ou não? — Pergunto ansioso e um tanto irritado.

Marina é minha melhor amiga. Trabalha para uma produtora de renome. Fizemos um curso de teatro em São Paulo e foi nos palcos que a conheci. Fiquei vidrado nela assim que a vi interpretando Leandra, uma ativista forte sem papas na língua. Bem ao contrário da doce Marina. Na época ela namorava o Paulo, um ator experiente que gostava de mostrar a todos o quanto sabia e o quanto nos desprezava. Uma espécie de Bradley Cooper, que deixa as garotas suspirando quando ele passa, mas de longe não tão bom ator quanto ele. Até hoje não entendo como ela pôde se apaixonar por um ser desprezível como esse! Pode até ser uma certa dor de cotovelo amparando essas palavras fortes, contudo, apartando-me do fato de ele manter constantemente as mãos na cintura de Marina, ainda o vejo como ele é. Desprezível. Mas tudo isso já passou. Tornamo-nos amigos e ainda somos até hoje, mesmo não sendo tão belo quanto ele, apesar de algumas amigas dizerem que lembro Johnny Deep, ainda tendo esperança de que um dia ela possa olhar para mim com outros olhos, já que me mantenho apaixonado por ela. Não tomo a iniciativa, pois não quero estragar nossa amizade.

— É claro que vou. Diga o que quer que eu faça.

— Bom, ainda não tenho o processo muito claro. Atores e atrizes eu consigo, agora o mais difícil é patrocinador. Você sabe como a coisa funciona.

— Entendo. E é aí que entro, certo?

— Mais ou menos. — Respondo envergonhado.

— Você sabe que podemos conseguir patrocínio pela Lei Rouanet.

— Sei. Mas isso é meio complicado, não é?

— Eu posso fazer o projeto para você. Mas sabe que tenho que informar todos os custos nos mínimos detalhes, inclusive com propaganda, vinte por cento de ingressos gratuitos, custos com roupas, cenário, iluminação, roteirista, direção...

— Ei, Marina, já chega. Eu ainda nem coloquei no papel...

— Mas já devia ter feito se quiser ir por esse caminho.

— Deve ter outro.

— Bom, farei o projeto pelas vias normais: o mecenato. Se aprovado você terá que ir atrás das empresas, correndo o risco de ouvir um belo e sonoro NÃO. Não é toda empresa que tem um superlucro para abater no Imposto de Renda.

— Qual é mesmo o valor do abatimento? Sabe que nunca cuidei dessas coisas pessoalmente.

— Sei. Bom, pessoa jurídica pode doar quatro por cento do que pagam e obterão cem por cento de abatimento fiscal. Mas as físicas também podem doar. Para os ricos, se você conhecer algum que queira jogar dinheiro fora...

— Você está engraçadinha hoje, Marina. Quer falar sério?

Ela me olhou, atrevida, e ergueu o queixo. Meu coração disparou ao ver a expressão de seus olhos.

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