Capítulo 9

Da cadeira onde estava, perscrutando o irmão, Ângelo pensava se teria alguma chance agora que o pai se fora. Era óbvio que Augusto não deixaria a rentável fazenda em suas mãos, contudo, talvez pudesse convencer o irmão a investir no mercado automobilístico ou, quem sabe, na indústria têxtil. Talvez precisasse que a mãe o ajudasse e nisso não via problema, já que, com certeza, os bens seriam divididos entre eles. Era nisso que ele acreditava enquanto esperava a presença do Dr. Villas Boas, o advogado da família. Mesmo que Augusto não aceitasse mergulhar em novos investimentos, ideias não lhe faltavam para usufruir de sua parte na herança. Sabia tudo o que estava acontecendo na Europa, com a ajuda de seus amigos dos tempos das Belas Artes, assim como em Nova York, já que acabara de chegar de lá. Não trazia boas notícias, entretanto, não era hora de passá-las adiante.

Marina estava com os olhos em cima do manuscrito de tia Eneida, o que me fez interromper a leitura mais uma vez.

— O que houve? — perguntei, diante de seu olhar enfastiado.

— Acho que não gosto desse cara, Ângelo. Algo me diz que ainda vai aprontar muito. Mas não pare. Quero saber mais.

Dona Afonsina secava os olhos com um lencinho de cambraia. Não esperava que a vida lhe desse esse desgosto tirando-lhe o marido, fiel companheiro, de forma tão vil. Nunca o vira doente. Era como um touro. Apaixonaram-se num baile do Clube dos Ferroviários, cujo pai era sócio. Ela no auge de seus vinte anos, dona de uma beleza simples, contudo charmosa, viu-o chegar vestido de gala, como a ocasião exigia. A primeira coisa a chamar-lhe a atenção foi seu porte esguio e seus ombros largos. Ele parecia olhar todos de frente, mantendo a cabeça erguida como se fosse alguém de extrema importância. Caminhava com segurança por entre os casais que rodopiavam pelo salão, cumprimentando alguns com um leve meneio da cabeça. Já não era um garoto como muitos que ali estavam, claramente desconfortáveis com o propósito casamenteiro do baile.  Algumas mães, inclusive a dela, chegaram a se abanar com os leques adornados com filetes de ouro, ao vê-lo passar decidido pelo salão.

Moças em idades perigosas o perseguiam com os olhos recatados, soltando suspiros silenciosos, entretanto, ele parecia não perceber. Também passou por ela, sem nem ao menos notá-la. Afonsina deu de ombros. Não seria a primeira e nem a última vez que era relegada às cadeiras desconfortáveis, esperando que algum jovem, forçado pela mãe, a tirasse para dançar. Afinal, era uma das herdeiras mais cobiçadas da cidade de São Paulo e, exatamente por isso, deixara claro, para horror dos pais, que só se casaria com quem ela mesma escolhesse. Quanto sermão e ameaça ouviu do pai, porém, Afonsina, sendo a única filha do Coronel Teodoro Magalhães, amigo íntimo do Presidente de São Paulo, Campos Salles, bateu o pé e disse que só se casaria por amor.

Sua mãe gostaria de ter feito o mesmo, mas aqueles eram outros tempos. Sentiu orgulho da menina, contudo, guardou para si. Bem que ela percebeu o olhar atento de Afonsina para o homem que acabara de entrar no recinto. Viu-a baixar os olhos, enrubescida. Sorriu com leveza, abanando-se com o leque. Disse que iria ao toalhete, deixando-a aos cuidados da amiga Marieta, cuja filha também se encontrava ali, à espera de um bom partido. Pediu para um jovem chamar o marido no Salão dos Homens, e quando o viu, falou-lhe do rapaz que acabara de adentrar ao salão e do leve interesse da filha. O marido sorriu complacente e, antes que a festa acabasse, lá estava ela rodopiando por entre os casais, feliz por ter sido a única a estar nos braços do belo mancebo. Afonsina nunca soube do empurrãozinho do pai. Fê-la pensar que o jovem se dirigira a ela por seus próprios encantos.

Para o jovem Enzo, aquele baile era sua chance de se encontrar com o Coronel Soares e propor-lhe a compra de uma faixa de terra, que fazia divisa com o lado esquerdo da Fazenda Santa Clara. Precisava daquele trecho, mas o tal Coronel teimava em não se desfazer dela. Ao ser interpelado pelo pai de Afonsina, entre baforadas fedorentas de charutos, sondando-o sobre o assunto que teria com o referido Coronel, Enzo se viu agradecendo ao futuro sogro pelo dedo de prosa que o velho teria com o amigo, incitando-o a vender-lhe as terras que tanto queria. É claro que o rapaz poderia lhe fazer o obséquio de tirar sua única filha para uma valsa.

Concordou a contra gosto. Já estava com seus trinta e seis anos e não tinha mais idade para pensar em paixonites. Sua paixão era a terra e o fruto negro que dela extraia. Ao ver a frágil menina, cabisbaixa ao lado da matrona, sentiu um frio no estômago. Algo naquela fragilidade chamou sua atenção, em especial quando seus olhos se encontraram. O rosto redondo o encarava com a serenidade de uma santa, contudo seus olhos eram chamas do mais puro pecado. Sentiu-se desconfortável ao encará-la. Mas uma promessa não velada havia sido feita e ele a cumpriria. Não era homem de dar para trás na palavra. E assim ele a tirou para dançar. O tecido sedoso do vestido azul teimava em roçar na sua perna e, a cada vez que isso acontecia, Enzo esquecia-se do que fora fazer ali. Só havia a criança em seus braços. Deixou-a com a mãe, com certa relutância. De volta à Fazenda Santa Clara, não dormia e nem conseguia se concentrar nos afazeres, pensando na pequena e no beijo roubado às pressas quando conseguiram despistar a matrona ansiosa, ao darem um pequeno passeio pela sacada do salão. Dias se passaram e ele resolveu voltar a São Paulo.

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