Capítulo 6

O que havia me inspirado a começar o roteiro da obra, se apagou como vela em frente a uma rajada de vento. Estava tudo em minhas mãos, contudo, a falta de uma finalização me deixava angustiado. Não queria terminar apenas para dizer que colocara no papel tudo o que sabia. Queria mais. Queria descobrir a verdade. Talvez essa inquietude se devesse ao sobrenome da minha família. Ninguém gosta de ter um palco de tragédia pairando sobre sua cabeça. E quanto mais me aprofundava no assunto, mais dúvida tinha. O que realmente aconteceu àquela família? Gente que não conheci, mas que pareciam viver ao meu lado, me instigando. Fechei os olhos e me deixei levar pelos fatos, formando imagens onde os protagonistas se tornavam pessoas reais, tendo que lidar com sentimentos e ressentimentos. Cheguei quase a me transportar para aquela época, tal o grau de envolvimento em que me encontrava, como se a qualquer momento pudesse surgir o fio que iniciava tudo, quando ouvi um martelar agressivo na porta. Levantei-me abruptamente, sentindo-me atordoado.

— Ei! Por acaso você estava dormindo? Estou batendo há horas nessa porta. — Resmungou Marina, exasperada.

— Oi, Marina. Também estou bem — disse, sarcástico, esperando por sua reação que não veio — Estava pensando.

— Nossa! Você está ficando fissurado. Como vão as coisas? Já terminou o texto?

— As coisas não são tão simples assim.

— O que houve? Ontem chegou a escrever tanto!

— Pois é. Parece que tive um bloqueio. São tantas situações. Mas na verdade não sei como terminar a estória. E isso está me matando! Não quero criar um final baseado nas minhas intuições e nem mesmo faltar com a verdade. Realmente não sei o que fazer.

— Bom, estou aqui. Podemos, juntos, passar ponto por ponto e ver se chegamos a uma conclusão. Assim me dá chance de entender como tudo se deu baseado nos relatos que tem em mãos.

— Talvez dê certo. Confesso que já passei os olhos tantas vezes por essa papelada que não sei se há algum ponto que tenha ficado despercebido.

— Talvez seja esse o problema. Quando a gente fica muito tempo numa única coisa, acaba não enxergando o que está bem diante dos olhos.

— Você pode ter razão. Vem. Sente-se aqui. Vou buscar uma taça de vinho e aí começamos a leitura.

— Beleza. E podemos fazer observações em cada capítulo. Vamos começar logo, Alberto. Estou curiosíssima.

Diante de tal incentivo, como não encontrar esperanças de fazer um excelente trabalho? Sentei-me ao seu lado, sentindo o cheiro da colônia que Marina usava e, após sorver um gole do vinho seco, me pus a ler para ela, que ouvia fascinada.

São Carlos, Junho 1.929.

Eles estavam voltando do cemitério Nossa Senhora do Carmo, cada um dos filhos segurando os braços da mãe enlutada. O pai, Enzo Corvecchio, agrônomo, proprietário da fazenda Santa Clara e de outras tantas propriedades no pequenino centro de São Carlos, acabara de falecer. Enfartou após erguer uma saca de café que havia caído da pilha que seria embarcada para o porto de Santos, rumo à Europa. Apesar dos seus setenta e oito anos, era um homem vigoroso. Alto, robusto, nunca sequer havia ficado seriamente doente. Aquela dorzinha que ia e vinha fora relegada ao excesso de carne de porco que ingerira no almoço. Nada como uma boa caminhada pelo cafezal para eliminar o desconforto estomacal, que ele acreditava ser o causador dos malditos gases que lhe subia pelo peito.

Deixou dois filhos — Augusto e Ângelo Corvecchio — os legítimos herdeiros, de seu casamento com dona Afonsina. Augusto, o filho mais velho, então com seus trinta e dois anos, vê-se como o responsável pelos bens da família: várias casas na cidade, armazém de secos e molhados, beneficiadora de arroz, Cine São Carlos e, inusitadamente, ações do jornal Correio de São Carlos, fundado em 1898, um ano após o seu nascimento. Seguiu os passos do pai e formou-se na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queirós, na cidade de Piracicaba, com honras.  Desde tenra idade andava com o pai por entre os pés de café, aprendendo sobre os grãos, moagem, tendências, preços da arroba, exportação e tudo mais que era preciso. Seu pai e mestre — herdeiro de uma grande família de latifundiários — havia sido enviado à Europa, como de costume à época, para estudar na Escola de Agricultura de Grignon, na França.

Fora criado na fazenda em meio aos pássaros e à lagoa, cuja água servia para girar o monjolo para a moagem do café. Não que seu pai não quisesse tê-la modernizado com o advento da energia elétrica, mas para que gastar dinheiro se o mecanismo ainda funcionava tão bem, movido pelas águas escuras da lagoa? Augusto adorava ver a roda gigante girando ao lado do prédio onde a moedora ficava. Quantas vezes tentou pular naquelas pás de madeira, acompanhando o percurso da água que descia rente ao teto do edifício de pedra, até o encontro com o solo, apenas para girar junto com a roda e se deixar cair no chão. 

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