Breve Recordação
Breve Recordação
Por: ABDENAL CARVALHO
Capítulo 1 - Infância

Os becos sujos e sempre repletos de ratos, serviam como campos de futebol para a maioria daqueles meninos que nasceram e cresceram em completa pobreza, sem perspectiva alguma de mudança. A pequena vila de Icoaraci, localizada a alguns quilômetros de Belém, era habitada em grande parte por famílias pobres, feirantes, vendedores ambulantes, domésticas e ainda uma enorme quantidade de desocupados que causavam terror permanente a quem passasse naquelas ruelas escuras e desertas, fazendo suas vítimas, muitas vezes fatais.

Dentre estes estavam Pedro e Felipe, os dois filhos mais velhos de Dona Suely, uma mulher determinada, batalhadora, de extremo caráter moral, decidida a manter o sustento da casa de forma digna e honesta. Qualidade essa ensinada exaustivamente aos dois filhos, mas que nunca deram ouvidos e acabaram por se envolver com o mundo do crime, as más amizades, o mau caminho.

Sua rotina era sair para o trabalho bem cedo só retornando no meio da noite, trazendo algum alimento das casas onde prestava serviços como diarista. Era uma mulher sem um companheiro para ajudá-la nas despesas. Vivendo sem o apoio não restava outra alternativa, senão tamanha luta e disposição. Assim, como ficava  ausente do lar na maior parte do tempo lhes permitia viver de forma absoluta. Livres para escolherem seus próprios caminhos, apesar de sempre que possível adverti-los sobre os perigos das más influências.

 Era seu hábito pedir que se mantivessem longe o possível dos traficantes que geralmente seduziam crianças, jovens e adolescentes para a venda de entorpecentes. Conselhos que pelo que se pôde ver nada adiantaram, pois foi exatamente isto que eles decidiram fazer, já que a vida de criminalidade dos dois irmãos cedo deu início e trouxe sérias consequências, tornando-se fugitivos de quem deviam drogas e da polícia, constantemente ameaçados de morte por ambos os lados.

Mesmo diante de fatos desastrosos como aqueles, era uma mulher de muita fé ao ponto de acreditar na recuperação de seus filhos. Sonhava em vê-los livres do vicio que lhes acorrentavam. Viviam acorrentados numa conduta reprovável e vergonhosa, que causava imensa dor e tristeza a seu coração de mãe, incapaz de condená-lo. Apesar de estar ciente de seus erros, continuava amando-os com a esperança de ver acontecer um milagre que pudesse livrá-los de tamanha desgraça.

Para seu conforto o filho caçula, Fabiano, de apenas nove anos, era muito dedicado aos estudos na pequena escola do bairro, onde estudava e recebia muitos elogios das professoras pelas ótimas notas alcançadas nos exames e por se destacar entre os alunos nas atividades escolares, onde permanecia durante todo o dia.  Apesar de ainda ser apenas uma criança,, era uma criança comunicativa e já demonstrava possuir grandes sonhos. Pois acreditava um dia se tornar um homem muito influente e assim conquistar seu lugar na sociedade que até então via menosprezar pessoas como sua mãe e os demais moradores da Vila.

Por causa da pobreza extrema em que viviam naquela densa escuridão ele era como uma estrela cujo brilho trazia esperanças, a luz no fim do túnel, de quem Suely poderia finalmente se orgulhar. Parecia ter sido o único a absorver seus insistentes conselhos para que fugissem da aparência do mal. Fabiano era uma criança apaixonada pelos livros, relia as mesmas estórias repetidas vezes e suas redações eram excelentes, mostrando-se otimista quanto ao futuro e sem dúvida aquele menino cheio de convicções iria mesmo ser um vencedor.

Ele veria em breve se concretizar todas as suas perspectivas. Visto que o destino o elegeu como a arvore frutífera daquela família e reservava-lhe um futuro surpreendente, porém por preço altíssimo de tristeza e solidão. Suely era uma mulher de muita força de vontade, nada a impedia de correr atrás de seus ideais, mesmo não tendo a sorte de alcançá-los todos, mas possuía uma saúde fragilizada por causa da vida difícil.

Eram constantes suas internações nos hospitais para cuidar da doença no coração. Debilitado principalmente com o avanço da idade e a tristeza por estar ciente dos recentes crimes cometidos por Pedro e Felipe, que resultou na prisão e dos dois criminosos, o que a deixou ainda mais angustiada. Contribuindo com o estado de saúde precário, permanecendo internada com poucas chances de sobrevivência.

Neste mesmo tempo os dois filhos marginais encontraram uma maneira de sair do presídio. Complicando ainda mais suas precárias situações perante a justiça que agora ordenou a captura dos fugitivos vivos ou mortos. Enquanto isso tudo acontecia, Fabiano passou a morar com sua tia Eulália, mulher amarga de espírito.

 Revoltada por natureza, que encontrava motivos para puni-lo com duros castigos. Mesmo quando nada fazia para merecê-los. Numa chuvosa manhã de sábado veio a triste notícia do falecimento de Suely, que não resistiu a cirurgia feita no fragilizado coração. Com a morte de sua mãe o pequeno Fabiano tornou-se vítima de constantes agressões, por pequenas travessuras que cometia na inocência de criança, usando isto como pretextos desnecessários para castigá-lo.

Seus irmãos que viviam na marginalidade, depois de escaparem da prisão, voltaram a cometer vários outros delitos. Com isso acabaram mortos pela polícia, a partir disso se tornou órfão por completo. Sua situação ficou cada vez mais insustentável ao lado da tia, principalmente depois de obrigá-lo a trabalhar na feira do Ver-O-Peso, forçando-o a deixar o colégio, onde concluía com êxito os estudos primários.

A vida do menino que tirava excelentes notas em seus exames e representava para sua mãe uma esperança de se libertar da vida de sofrimentos que levava, sofreu uma radical mudança, levando-o a seguir por caminhos alheios aos seus propósitos, além do que imaginava para si.  Porém, quando o destino escreve o início de uma estória sabe concluir o final que considera ideal para seus personagens e jamais esquece de criar para eles os meios certos para viverem superarem obstáculos.

 Cria meios que lhes possibilitem chegar ao ponto que ele mesmo definiu neste mundo, para que encontrem no fim do arco-íris seu tesouro escondido. Na sua convivência diária entre os feirantes ficou mais experiente. Aprendeu rapidamente a forma correta de vender seus produtos ao público e por ser bastante comunicativo conquistou a amizade de todos, que se admiravam da maneira como aquele menino, que com tão pouca idade, era capaz de chamar a atenção com seu jeito extrovertido, e cercavam a barraca, comprando seus produtos à venda sempre em grandes quantidades.

 Causando admiração em redor. Por conta disso, muitos deles passaram a assediá-lo para que trabalhasse com eles em suas bancas, prometendo-lhe boa remuneração, o que passou a fazer depois de encerar suas vendas. Seu jeito alegre atraia os muitos turistas que por ali passavam, novos e idosos tinham afeto pelo garoto simpático que trouxe alegria ao Ver-O-Peso.  

Até os capitães dos navios pesqueiros que atracavam no cais comentavam a seu respeito. E alguns deles o convidavam para viajar e conhecer o alto mar, convites que lhe despertavam imensa curiosidade. Certo dia ancorou nas Docas o navio “Esmeralda”, cujo destino era seguir viagem rumo ao Marajó, uma região de pequenas ilhas localizadas entre Belém e Manaus, bastante conhecidas pelos navegantes, mas nunca visitadas pelo menino que sonhava poder andar por aqueles lados.

 Sua mãe sempre fez diversas menções sobre as enormes fazendas existentes por lá, onde nasceu e viveu toda sua infância e parte de sua juventude, u lugar onde a natureza revelava seus mistérios, onde era possível ver os búfalos com seus chifres curvados, ferozes e cujo leite era dez vezes mais forte que do gado comum.  Eles eram animais admiráveis como sua mãe lhe falava e, para sua surpresa.

Damião, capitão do navio, demonstrou interesse em levá-lo com ele. Seria numa viagem rumo a ilha, o que seria uma chance de realizar seu primeiro grande sonho: Conhecer os encantos do Marajó. Naquela manhã de verão despertou atordoado com a barulheira que vinha da pequena sala do barraco de madeiras em que passou a morar com a tia, depois que perdeu a mãe e os irmãos.

  Uma confusão tremenda se ouvia lá fora. Eulália e o companheiro se agrediam depois de voltarem embriagados de uma festa. Uma rotina do violento casal em se espancarem depois de uma noite embriaguez e quem sofria com esse desajuste todo eram suas duas filhas ainda adolescentes. Toda aquela situação causava mais ânimo em Fabiano para seguir à procura de algo melhor para sua vida, pois entendia que aquele ambiente desajustado não lhe era propício.

Aproveitando o ensejo, partiu logo cedo para o trabalho juntamente com seu Hilário, o vizinho feirante que lhe ofereceu carona no velho carro de cargas.  Sentia-se capaz de cumprir seus afazeres na feira sem ter que depender de Eulália, principalmente ao ver o triste estado em que ela se encontrava. Pelo caminho, trocava umas ideias com seu novo amigo, a respeito do Marajó e os bois búfalos, sua grande paixão: 

    — Então quer dizer que lá na ilha está cheio de búfalos, Seu Hilário? 

    — Sim, menino Fabiano, e são animais belíssimos de se ver!

    — Minha mãe sempre falava sobre como eles eram enormes e ferozes. Todos negros e bem fortes!

     — Verdade, eles são mesmo muito interessantes, quem sabe um dia você terá a chance de vê-los bem de perto!

     — Vou ver sim, um dia vou ser muito rico e comprar muitos búfalos para minhas fazendas no Marajó, quero montar meu cavalo de raça e correr no meio deles! 

 Os dois seguiram conversando a respeito daquele assunto que enchia o coração do menino de sonhos. Sem ao menos imaginar que tudo aquilo fazia parte dos planos que o destino de antemão já reservava para ele. Após o horário matinal circulava pelo cais e observava os navios que pareciam gigantes à sua frente, aproveitando para explicar seu maior sonho ao amigo:

  — Na verdade não pretendo conhecer outros lugares, apenas o Marajó, porque quero ver de perto os búfalos, e sei que lá tem bastante

  — Bom, então isto é muito fácil da gente resolver

  — E como a gente poderia resolver isso, Seu Damião?      

  — Você vem comigo no velho navio “Esmeralda” e zarpamos amanhã bem cedo!

A proposta feita pelo velho marujo das águas deixou o menino cheio de curiosidades em poder conhecer de perto os misteriosos animais que sua mãe sempre lhe fez tantas menções ao relembrar os tempos de sua juventude. O maior problema agora seria conseguir que sua maléfica tia lhe permitisse viajar com o amigo, pois ainda era menor e dependia da aprovação dela. Ao retornar para casa decidiu enfrentar a etam mulher que estava sempre enfurecida e saber,logo de uma vez, sua posição diante daquele assunto: 

   — E é assim, tia, meu amigo Damião me fez esse convite e eu gostaria muito de poder ir conhecer a terra onde mamãe nasceu e cresceu. Ela falava muito do Marajó, dos búfalos e de como tudo por lá é maravilhoso! Me deixa ir com ele, tia? 

   — Nem pensar, moleque! E quem vai cuidar da barraca enquanto você fica dando uma de turista por a? Pode ir logo esquecendo essa ideia absurda, aqui quem come tem que trabalhar, e ponto final nessa conversa!

   — Minha irmã não está mais aqui, garoto, eu digo como vão ser as coisas para ti daqui para frente, entendeu? Já decidi que você vai é para a banca lá na feira, vai se acostumar a trabalhar e ganhar dinheiro!

A resposta de Eulália não causou surpresa em Fabiano, que já contava com aquela reação explosiva e tinha um segundo plano para colocar em ação. E faria isso caso sua primeira tentativa desse errado.

  A Primeira Viagem

 A manhã daquele sábado era fria, do tipo que faz qualquer um querer continuar na cama, mas o desejo de partir naquela aventura era maior que tudo e o sol ainda nem tinha despontado no horizonte, quando o novo tripulante já chegava a bordo. Levava consigo uma velha mochila com alguns pertences, nada que pudesse lhe causar embaraços, o navio levantou âncora e seguiu viagem rumo as ilhas.

 Conduzindo o menino para realizar o primeiro de muitos dos seus sonhos, Fabiano finalmente pôde ver a imensidão das águas do Guajará e sentir a suave brisa que passeava por entre seus cabelos e resfriava sua pele. E ao mesmo tempo passava por entre seus pequenos dedos estendidos na direção do infinito.

Acompanhado de um sorriso inocente e cheio de felicidade, em casa Eulália sequer de longe imaginava que o pequeno tivesse largado a banca de frutas ao relento. Ele seguiu com os pescadores para uma viagem rumo ao Marajó, dando asas a realização de um grande sonho. Somente no final da tarde, Seu Hilário foi até sua casa e explicou em detalhes o acontecido. A odiosa mulher esbravejava de revoltas e jurava penalizar o sobrinho, quando este voltasse. Esta seria mais um dos projetos arquitetados pela sabedoria do destino.

 Que pretendia conduzir seu personagem rumo ao final que lhe havia reservado, um fim glorioso, repleto de grandes realizações, porém triste e fadado a infelicidade.  Após um dia inteiro de viagem, com intenso cansaço e quando a escuridão da noite dava sinais de sua chegada, ao longe avistou o vilarejo à beira do rio, Damião explicou ao interessado tripulante que se tratava da vila de Soure. Habitada por famílias “ribeirinhas”.

E logo aproveitou para dar uma paradinha no lugar, afim de pernoitar e descansar da longa viagem. Ali teve a chance de conhecer várias pessoas e fazer diversas amizades. Pois Damião decidiu permanecer por lá durante três dias. Neste período foi que conheceu Berenice, uma agradável senhora que, junto ao marido tomava conta da fazenda de búfalos Três Marias, pertencente aos Braga, uma das mais ilustres famílias paraenses, donos de muitas terras, indústrias e várias outros tipos de propriedades.

 Haviam ali muitos búfalos espalhados por todos os lados da imensa fazenda, o menino se encantava com tanta diversidade de animais.  Grandes e robustos, com chifres pontiagudos, enrolados, curvos e bem apontados para baixo. Os meninos do vilarejo eram espertos, sabiam fazer muitas coisas interessantes, como montar a cavalo e perseguir os bois para colocá-los de volta ao pasto.

Quando estes se desgarravam pelo mato, na influência dos demais, Fabiano aprendia um pouco de tudo o que podia ao lado deles. Aprendeu como tirar o leite das vacas, no curral, para se fazer queijos, coalhadas e beber no café da manhã. As novidades conquistaram imensamente o coração do menino sonhador, que acreditava poder um dia ser um homem importante. Infelizmente completaram-se os três dias e o navio levantou âncora. Damião se despediu de alguns parentes que viviam ali e Fabiano dos amigos que conheceu em tão pouco tempo e de quem guardaria fortes lembranças no seu coração.

 Depois de receber calorosos abraços e se despedir de Berenice, que ficou encantada com sua maneira de ser, partiu novamente no “Esmeralda”, no intuito de presenciar pela primeira vez uma pesca nas águas do grande rio. O navio pesqueiro parou meio a baia e os pescadores lançaram suas redes, que retornavam repletas de pescados, para a admiração do menino que nunca tinha visto peixes tão grandes e ainda vivos, foram pegos peixes de grande porte, tudo era novo e surpreendente.

 Despertava-lhe cada vez mais grande interesse pelo trabalho dos navegantes, repleto de novidades jamais vistas por ele.  Por fim, chegou o momento de retornar para Belém, trazendo várias toneladas de peixes para vender aos revendedores. Ao saber que retornariam Fabiano descaiu o semblante, uma visível tristeza podia ser percebida em seu olhar. Damião, um homem bastante experiente, logo se deu conta de que algo o incomodava e quis interrogá-lo.

Mas ele era bem discreto ao ponto de saber guardar seus assuntos pessoais somente para si mesmo.  Num ímpeto dirigiu-se ao capitão e indagou se seria possível, naquele momento, encostar no vilarejo. Pois pretendia rever os amigos, mas recebeu uma resposta negativa.

 Porque era necessário levar imediatamente a carga para as Docas, para evitar que o extravio, o navio “Esmeralda” retornou a Belém, cumprindo mais uma de suas viagens com êxito. Porém algo de muito sério aguardava seus tripulantes em terra seca. Eulália teria alertado o juizado sobre o possível rapto de seu sobrinho. Acreditava ter sido por pescadores que o teriam levado num navio para local incerto.

A polícia enviou uma equipe para tentar resgatar o menor de um possível sequestro. Logo que o navio se aproximava das Docas o capitão e sua tripulação foram surpreendidos por vários agentes. Eles vieram em lanchas e subiam a bordo, interceptando o navio. Logo que confirmaram a presença de Fabiano no local. O navio foi apreendido, seus tripulantes presos e encaminhados para depor perante o delegado responsável pelo caso, acusados de sequestro.

Durante o longo interrogatório, Damião se declara inocente das acusações. E afirma que o menino esteve com ele de livre e espontânea vontade, declaração confirmada pelos demais tripulantes, o que levou a uma acareação entre o menino e o capitão, onde foram avaliadas as versões daquela confusa história.

Além da declaração de Fabiano a respeito dos maus tratos cometidos por parte de sua tia, inverteu-se a situação. Seu Hilário, por morar nas proximidades e estar ciente do que acontecia com o menino, foi chamado para confirmar a denúncia feita contra Eulália, o que fez prontamente.

 Pois todos na Vila sabiam dela tê-lo afastado da escola, obrigando-o a trabalhar na feira, e ninguém concordava com aquilo, mesmo ficando em silêncio para evitar sérios confrontos. Informação reforçada por outras testemunhas.

Após ouvir a narrativa e avaliar todos os detalhes, a autoridade ordenou que os policiais fossem intimar a acusada a depor, porém, ao chegarem no endereço foram informados que ela havia vendido o velho barraco de madeiras, evadindo-se do local para lugar incerto. Isto apenas deu maior ênfase às denúncias feitas pela criança e seus amigos. A respeito das maldades por ela praticadas contra ele, sem provas que o culpassem de sequestro do menino.

 O marinheiro, juntamente com sua tripulação foram absorvidos e puderam seguir viagem. Quanto a Fabiano ficou sob a guarda do juizado de menores que aguardariam a presença de algum parente que desejasse responsabilizar-se por ele, caso isso não ocorresse, o mesmo seria enviado a um orfanato.

 O Orfanato

Aquela casa parecia mau assombrada, com suas paredes antigas e cheia de lodo, em boa parte haviam profundas rachaduras que davam a impressão de que tudo ali poderia desmoronar de uma hora para outra. A assistente social segurava a mão do menino e apertava com força, parecia querer evitar sua possível fuga, haviam outras crianças naquele local sombrio, todas pareciam apresentar a mesma demência. Elas tinham seus olhares tristes e assustados.

Aproximaram-se do balcão e, enquanto as mulheres resolviam a questão sobre sua permanência no assombroso lugar ele passava a vista por cada canto. Ele considerou aquilo ali como a própria semelhança do inferno. Mas teria de encarar.   

 — Pronto, Fabiano, tudo certo para sua estadia aqui no Orfanato Santa Tereza, de agora em diante as freiras ficarão responsáveis por você, comporte-se, entendeu? 

  — Sim, senhora!

 O corredor daquele enorme casarão, que dava a impressão de ter sido construído séculos atrás, era quase infinito. A freira baixinha, gorda, carrancuda e de semblante amargo, puxava-lhe pelo braço, era grosseira e não demonstrava ter qualquer afeição por crianças, apesar de ser seu trabalho cuidar delas. No final do estreito corredor, quando suas pernas curtas ardiam de cansaço, pôde parar por um segundo e entrar num cubículo.

 Onde encontrou um velho beliche disponível, com cobertores e travesseiros manchados. As crianças dormiam agrupadas num mesmo beliche de três camas, as meninas ficavam separadas dos garotos, numa outra ala do lugar. Fabiano dividiria o pequeno quarto com cinco outros meninos de sua idade, entre eles estava Gilberto que futuramente se tornaria seu melhor amigo. A rotina ali era participar das aulas ministradas pela arrogante Maristela.

Ela se achava o centro do universo, depois participar das oficinas de artesanatos. Local onde os pequenos aprendiam fazer peças em argila, que depois eram fornecidas por um preço mais em conta para os artesões, depois eles revendiam nas feiras livres ou em exposições. O lado difícil da vida naquele lugar era ter que suportar os abusos de Valéria. A amarga diretora que parecia odiar todas as crianças e sentir um desprezo particular pelo novo morador da casa.

Talvez sua apatia por Fabiano se desse pelo fato dele ser diferente dos demais meninos.  Além de mostrar maior nível de inteligência, era também mais ágio em tudo o que fazia, um aluno brilhante, em diversas ocasiões foi trancafiado num quarto escuro, punido injustamente. Pagava pelos erros cometidos pelas outras crianças e que lançavam a culpa sobre ele, à mando da maquiavélica diretora.

Serviços como lavar o piso das espaçosas salas, aparar a grama do jardim, podar pequenas arvores e até ajudar Dona Amélia. A cozinheira gorda e rabugenta, nos afazeres domésticos, lhe era ordenado. Mas tudo fazia com humildade, ciente da injustiça sofrida.  Mas permanecia crente de que tudo aquilo se transformaria em incomparáveis recompensas lá na frente, quando colhesse seus frutos. Pois assim aprendeu na curta convivência que teve ao lado de sua mãe. Numa das tantas vezes em que foi penalizado sem causa. Permaneceu o dia inteiro na apertada “solitária”, o local de cumpria seus castigos.

Mas, apesar de ter consciência disso, não era do tipo que se conformava em estagnar em certas situações. Nem esperar que a coisas acontecessem, preferia ir em busca dos seus objetivos. E com essa perspicácia o menino possuidor de inúmeros sonhos tomou a decisão de fugir daquele inferno. Por entender que seria uma tremenda perca de tempo permanecer naquele lugar enquanto haviam tantos sonhos para alcançar. Numa conversa com seu novo amigo Gilberto, confessou-lhe sua intenção em voltar paras ruas:

     — Me leva junto, também quero sair dessa droga de lugar!

     — Tudo bem, presta atenção: Vamos dar um jeito de deixar a porta da cozinha destrancada depois que a cozinheira sair de lá e, quando todos estiverem dormindo, a gente sobe a arvore ao lado do muro e fugimos

     — Legal! Naquela noite os dois amigos fizeram como o planejado e na madrugada deixaram o orfanato, seguindo pelas escuras rua da cidade completamente deserta.

 A Segunda Viagem

Depois de fugir do orfanato na companhia do novo amigo, que decidiu seguir em direção oposto, Fabiano seguiu de imediato ao Ver-O-Peso, na esperança de reencontrar ou pelo menos ter notícia de Damião, pois tinha em mente voltar para o Marajó no “Esmeralda”. Mas, certamente o capitão recearia colocá-lo novamente a bordo de seu navio depois do infeliz episódio anterior, mas queria tentar convencê-lo disso. 

Porém, ao chegar nas Docas foi informado que o navio tinha acabado de fazer viagem em direção a Manaus e que só retornaria depois de duas semanas. Como tinha pressa em sair de Belém para evitar ser recapturado pelo juizado de menores, usou a estratégia, pegando carona noutra embarcação. Por coincidência, João Franzino, um velho conhecido e experiente navegante que por muitos anos cruzou as águas barrentas do Rio Guajará, com seu antigo barco atracado perto dali e isto lhe permitiu ir a seu encontro.

Pretendia pedir-lhe auxílio, afim de chegar até o vilarejo de Soure e reencontrar os amigos que conheceu na última viagem.  Franzino era assim conhecido pelo fato de ser alto e magro, bastante encurvado e de olhos esbugalhados. Era viciado em bebidas fortes, causava espanto nos que tinham a má sorte de cruzar seu caminho. No entanto, o destemido menino nunca teve problema algum em se aproximar dele desde a época em que vendia na barraca de sua tia, quando ele costumava comprar uma boa quantidade de frutas, época em que se conheceram e fizeram uma sólida amizade:

   — Bom dia, Seu Franzino, como vai?

   — Menino Fábio, que faz a estas horas do dia por estes lados? 

   — Não é Fábio, Seu Franzino, é Fabiano!

   — Sei, sei, mas responda meu rapaz, o que lhe faz visitar esse velho aventureiro das águas, assim tão cedo? 

   — Vim aqui lhe pedir um importante favor e espero que possa me ajudar 

   — Está bem, meu jovem, me fale como posso lhe ser útil?

   —  Seu João Franzino, me leva no teu barco até o vilarejo?

   —  Valeu, Seu Franzino, pode deixar que lhe contarei tudo!     

   —     E posso saber o que pretende ir fazer tão longe?

   —   É uma longa história, eu lhe conto tudo no caminho. Me leva no seu barco, por favor, em nome se nossa amizade!

   — Está bem, mas quero saber direito a respeito dessa estória!

O velho barco saiu do porto na direção das ilhas, levando o audacioso passageiro. Agora ele já conhecia o caminho, sabia onde precisava chegar.  Durante a viagem deixou João Franzino ciente dos últimos acontecimentos e como foi abandonado por sua tia num orfanato, de onde teve que fugir na companhia de um outro interno que decidiu seguir por outro caminho.

Explicou que seu propósito era encontrar abrigo entre os ribeirinhos com quem manteve contato ao visitá-los tempos atrás. Para ajudá-lo, Seu Franzino levou o garoto até seu destino e somente saiu de lá após ter certeza que estava em boas mãos.  Berenice foi informada que o menino estaria de volta ao vilarejo e decidiu ir ao seu encontro, porque tinha por ele um afeto imenso, desde o dia em que o conheceu na companhia de Damião.

Como era estéril, desejava muito tê-lo por perto, para satisfazer seu desejo de ser mãe. O reencontro não poderia ter sido mais emocionante. Pois ambos se amavam de uma forma inexplicável, a amizade que nasceu entre eles era admirável.  E foi esta afeição que os unia a razão dele querer retornar, sabia que seria aceito e amado por todos, principalmente por Berenice.

Que desde o princípio se mostrou encantada com a carisma existente no garoto como previa, foi convidado por ela a morar em sua casa, era seu plano adotá-lo. A fazenda Três Maria ficava localizada a vários quilômetros do vilarejo e seu difícil acesso se dava através de um estreito caminho, marcado pelas marcas de pneus da carroça usada por Berenice. Nas suas constantes idas e vindas para comprar os mantimentos necessários para seu sustento e dos animais domésticos, os quais eram em grandes quantidades.

 O dia a dia de Fabiano meio aos bichos ao redor da nova casa onde passou a morar lhe fez aprender amar a vida no campo. Longe dos problemas da cidade, esquecer em parte o sofrimento vivido ao lado da mãe e dos irmãos criminosos em seus primeiros anos de infância. Encontrou naquele lugar a paz que precisava para planejar melhor seu futuro e ter maior certeza de que chegaria no topo de seus sonhos. Aquela era a ocasião propicia para organizar suas ideias, repensar a forma correta de alcançar seus verdadeiros objetivos.

 Fabiano era uma criança diferente das demais, sua maturidade mental era além da idade que possuía, o aspecto físico não revelava sua verdadeira capacidade de interpretar a vida, talvez pudesse ser visto como um pequeno gênio, alguém além do seu tempo. O menino nascido na cidade adaptou-se rápido com a vida na fazenda, além de Berenice, haviam ali dezenas de vaqueiros que cuidavam dos rebanhos de búfalos, Valentino, o capataz, também sentia afeição pelo esperto garoto e o levava para a mata, ensinando-lhe como tocar o gado.

 O que já tinha aprendido antes com a garotada do vilarejo. Ajudava ordenhar as vacas leiteiras e acompanhava os vaqueiros em tudo o que faziam. Ainda lhe sobrava tempo e disposição para cuidar das hortaliças plantadas nos canteiros e alimentar as criações existentes ali. Podia fazer uma profunda leitura nos livros de estória que haviam guardado numa estante. Haja disposição! Uma vez por semana ia com Berenice à capital fazer compras e podia rever velhos amigos no Ver-O-Peso.

Saber das novidades e notícias de sua tia com Seu Hilário, que disse ter Eulália separando-se do marido e agora morava com as duas filhas em Santa Maria. Uma pequena cidade distante dois quilômetros de Belém. Na época de sua fuga do orfanato o juizado de menores deu para sua única parenta, a responsabilidade de resgatá-lo das ruas e, ao ser ameaçada de ser penalizada, desde então vivia à sua procura.

 E, diante disso, sempre pedia aos amigos feirantes que não lhe dessem qualquer informação a seu respeito, afim de evitar que ela novamente acusasse aqueles que o ajudaram de sequestro, e como todos conheciam o mau caráter de Eulália concordavam em nada dizer a respeito. Os meses se passavam depressa e Fabiano passou a estudar na singela escola do vilarejo com o professor Gouveia.

 Um rapaz esforçado que estudou magistério em Belém. E depois de formado decidiu se dedicar ao ensino das crianças pobres na ilha. Como sempre, se destacava entre os demais e suas médias escolares surpreendia a todos. Tinha muita facilidade em aprender e dominava bem as letras.

— Vim aqui para lhe dá um importante conselho. Acredito que o menino Fabiano tem um nível intelectual alto demais para tão pouca idade e seria um enorme desperdício deixá-lo aqui nesta ilha, distante de onde ele possa desenvolver-se corretamente. Aconselho que encontre uma forma de devolver esta criança ao meio urbano, onde lhe seja possível brilhar na intensidade da luz que possui

— Está insinuando que eu o devolva para as ruas de onde acabou de sair? Tem ideia do absurdo que me pede, professor?

— De maneira alguma, na verdade tive em mente lhe propor outra solução para este problema: Porque a senhora não leva a situação dele ao conhecimento de Paula Braga? Ela é rica e bem influente, pode encontrar o lugar ideal para a permanência dele até sua maioridade, quando assumirá sua vida e escolherá seu próprio caminho. Isto, sem considerar a grande possibilidade de ela resolver adotá-lo, aí ele se tornaria um dos herdeiros diretos de toda aquela fortuna!

 — Não tenho ambições quanto a isso!

 — Eu compreendo, mas, e quanto a ele, será que também pensa assim? Não esqueça da capacidade que tem este menino e do quanto precisa de ajuda para alcançar tudo aquilo que o destino lhe reservou!

 Berenice caiu em si e percebeu como estava agindo de forma egoísta, levando em conta apenas seu propósito de ser mãe e esquecendo-se da urgente necessidade em ajudar seu pequeno amigo. Lhe permitindo conquistar seus verdadeiros ideais, que era se tornar um homem de grande prestígio, alcançar uma alta posição social, mostrar todo seu potencial, como ele mesmo costumava dizer durante as conversas que tiveram.

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