A manhã começava arrastada para Carly. Ela voltou para casa bem cedo. O celular vibrava em cima da mesa, e o nome que apareceu na tela fez seu coração pular uma batida. Ela ficou surpresa.Helena: “Oi, querida. Vamos manter nossa lição de discipulado hoje?”Carly ficou olhando para a mensagem por um tempo. Seus dedos pairaram sobre o teclado. Não esperava aquilo. Depois do término com Pedro, acreditava que Helena tomaria partido do filho e a ignoraria — ou, pior, a rejeitaria.Mas ali estava ela. Com sua suavidade habitual. Como se nada tivesse mudado.Carly respondeu:“Sim, claro. Podemos sim.”E logo em seguida, teve uma ideia. Algo que poderia soar loucura... ou coragem. Então, decidida, pegou sua bolsa e saiu para o trabalho. No hospital, o ambiente era silencioso, exceto pelo murmúrio distante de conver
A noite descia como um véu sobre a cidade, encobrindo as ruas num silêncio morno. Carly ficou na porta, observando o carro de Helena desaparecer na esquina, até que o último feixe de luz dos faróis sumisse. Suspirou profundamente. O discipulado daquela noite tinha mexido com ela. Mas agora, outra visita era esperada. E não era nada espiritual.Pedro havia mandado uma mensagem rápida: “Como pediu, vou passar já aí.” Foi até o banheiro, onde a água quente caiu sobre os ombros como uma cascata de memórias. Lembrou-se de Letícia. Do rosto molhado de lágrimas, da dor escondida por trás da compostura. Ela precisava ouvir o que Pedro tinha para dizer. Precisava saber se ele era realmente quem dizia ser… ou quem queria que fosse. Ao sair do banho, colocou o roupão azul felpudo, secando ligeiramente os cabelos úmidos com a toalha. Sentiu-se estranhamente confortável com o contraste entre das pantufas laranjas e o toque do perfume que espalhou pelos pulsos e pescoço. Um detalhe bobo, talvez,
O silêncio que caiu entre eles era espesso, quase palpável. Apenas os dois, frente a frente, envoltos pelas palavras que haviam dito, pelo passado que haviam rasgado em voz alta. A lasanha esfriava, esquecida sobre a mesa, mas a verdade... essa fervia.Carly se inclinou ligeiramente. Seus olhos, cravados nos dele, tinha algo de incômodo e hipnótico ao mesmo tempo.— Pedro... — sua voz saiu baixa, mas firme. — Você realmente me ama?A pergunta pegou-o desprevenido. Ele assentiu sem pensar, instintivamente, mas ela não sorriu.— Você me ama... mesmo — ela se levantou com calma, aproximando-se. — Ou ama a ideia de me ter?Pedro mordeu o lábio inferior. Um gesto automático, denunciando a culpa que lhe pesava no peito. Seus passos eram leves, quase silenciosos. Ele a seguiu com o olhar, tenso, como se esperasse que ela se transformasse a qualquer instante. Havia algo diferente nela, algo que ele não conseguia decifrar. Então, num movimento quase imperceptível, ela inclinou-se e o beijou.
O fim da tarde tingia o céu com tons suaves de laranja e dourado, enquanto Carly e Serina dividiam uma taça de sorvete, sentadas em uma mesa próxima à vitrine da sorveteria favorita da infância. Os avós moraram ali por anos, a mãe tinha crescido naquela rua.O lugar não havia mudado tanto, o letreiro "Gelato Kadosh" ainda piscava em azul neon. As mesas redondas com cadeiras coloridas, o som suave de um sax ao fundo. O aroma de casquinhas frescas misturava-se com risadas de crianças, e a sensação era reconfortante.Carly deu uma risadinha leve, o olhar perdido na rua.— Acabei falando sobre aquele assunto com Pedro. — Suspirou, como quem tira um peso dos ombros.Serina levantou os olhos, com espanto.— Carline, você foi atrás dele? — Indagou, enquanto pegava uma colherada de sorvete. — Quer dizer, você ama ele mesmo.A irmã passou o dedo pela lateral do copo onde derretia a combinação clássica: chocolate, baunilha e creme. O trio que nunca falhava.— Apesar de tudo... ainda gosto muito
O carro deslizou pela estrada de forma quase imperceptível, como se os faróis fossem os únicos olhos atentos naquele fim de noite. Carly mantinha as mãos no volante com firmeza, mas a sua respiração denunciava a preocupação. Ao lado, Monteiro mantinha-se sereno, como um pilar silencioso.Nenhum dos dois falava. O rádio estava desligado. Por fora parecia tudo tranquilo, mas por dentro inquietante. Aquele silêncio que antecede um mergulho.— Ainda dá tempo de voltar? — Murmurou, com os olhos fixos na estrada.— Quer dar para trás? Acredito que se formos, vai me agradecer depois... — respondeu Monteiro.Ela estava olhando de relance para ele, indignado. Acrescentou: — Poxa Carly, você já foi até aquele fim de mundo procurar ela. Agora vai desistir?— É, mas agora não sei se quero continuar com isso.— Tenha coragem. Estamos chegando. — Ele apontou com o dedo, onde deveria estacionar. — Para perto daquela viela. Carly estava a alguns metros de distância. Ficou parada, encarando o própri
A noite começava a ganhar vida no salão principal do El Dourado, cenário da tradicional cerimônia anual do hospital. Era o ápice do ano para os profissionais da saúde, um momento de reconhecimento pelas batalhas diárias e pelas vidas transformadas ao longo do caminho. Luzes sofisticadas refletiam nos lustres de cristal, enquanto uma música suave preenchia o ambiente.Os convidados trocavam sorrisos, brindes e abraços calorosos, celebrando com entusiasmo. E ali, em meio ao brilho da festa, estava a deslumbrante fisioterapeuta Carly Ramires. Seu nome ecoou pelos alto-falantes, chamando-a ao palco.Ela caminhou sob os holofotes com um sorriso mecânico, recebendo o prêmio de excelência profissional. O troféu nas mãos não suavizava o incômodo em seu peito. "O que eu estou comemorando, afinal?", pensou. Enquanto descia os degraus, os cumprimentos pareciam distantes.— Parabéns, Carly. Você merece! — diziam os colegas.Mas por dentro, ela sabia: aquele reconhecimento não era suficiente.À mar
O culto havia encerrado, Pedro estava sentindo-se leve. A comunhão daquele lugar sempre lhe trazia paz, mas, ultimamente, os dias não estavam fáceis. Principalmente porque tinha alguns sentimentos reclusos, algo que o inquietava. Nisso, acabou saindo com pressa da igreja. Enquanto caminhava em direção ao estacionamento, seu olhar foi atraído pela lanchonete da esquina.Lá estava ela, sozinha, distraída no celular, tomando um milkshake. Seus olhos paralisaram naquela imagem. A lembrança do primeiro encontro entre os dois surgiu com nitidez. Os olhos claros e expressivos, que à primeira vista pareceram assustados. Os lábios delicados, a postura confiante dela. Na época, ele chegou a imaginar que uma mulher como aquela só podia ser comprometida. Lhe tratou com respeito. Era muito preciosa. Mas ele estava chateado com ela, porque sem aviso algum, simplesmente... se afastou.Pedro hesitou. Devo ir até ela... ou é melhor ignorar isso? Pensou.A dúvida o fez andar de um lado para o outro, de
Para Pedro, o funeral do seu pai foi um dos momentos mais difíceis que ele enfrentou na vida. O homem que lhe ensinou tudo sobre fé, caráter e determinação, agora partia, deixando um vazio impossível de preencher. Durante a cerimônia, sua mãe estava inconsolável, e Pedro tentava ser forte por ela. Mas, no fundo, ele também estava destruído.Entre os rostos conhecidos que vieram prestar condolências, um, em especial, chamou sua atenção. Ele avistou de longe um homem alto, de terno impecável, óculos escuros e expressão séria que desceu de um carro preto e vinha caminhando na direção deles. Pedro não precisava de apresentações. Ele reconheceria seu irmão mais velho em qualquer lugar.— Gutto… — murmurou Pedro, engolindo a seco, surpreso.Gusttavo Filho, ou Gutto, como era chamado pelos mais íntimos e a família, ele morava em Nova York há anos. Advogado criminal, levava uma vida intensa e quase nunca vinha ao Brasil. Pedro mal se lembrava da última vez que o viu pessoalmente. O irmão reti