Recomeço?

Enquanto dirigia eu sentia o corpo inteiro anestesiado, em pouco tempo eu tinha perdido o meu pai, sido abusada, e me tornado uma assassina.

Minha vida havia acabado, eu não sabia o que fazer, só precisava sair da cidade o quanto antes, pois além de ter passado por tudo isso, eu poderia ser presa.

Ainda não tinha tido tempo de contar, mas sabia que na mochila tinha muito dinheiro, daria para me virar por um tempo, e conseguir uma nova identidade.

Ao chegar no centro da cidade, busquei pelos tais homens com placas de "vende-se ouro", o John, o traidor do John, uma vez me disse que aquelas homens sabiam onde arrumar qualquer coisa legal ou ilegal.

Andar em meio ao caos, foi terrível e extasiante, pessoas gritavam, pediam dinheiro, vendiam coisas, mal percebiam o meu péssimo aspecto.

-Olá, como eu consigo um documento aqui? - perguntei a um homem velho, com a tal placa.

Ele me olhou de cima a baixo, e me indicou o prédio do governo que emitia documentos.

-Estou falando de identidade falsa! - eu disse sem tempo a perder, e morrendo de medo daquele homem chamar a polícia, ou não fazer ideia de como me ajudar..

Ele ficou um tempo me avaliando, e percebendo meu péssimo estado, disse:

-Você deve realmente estar precisando, vem comigo - e foi andando na frente.

Eu o segui, aquele senhor pra sua idade andava rápido demais e sabia perfeitamente se desvencilhar da multidão que saia de todos os lados, indo para todos os lados.

Em certo momento quase o perdi de vista, mas o alcancei a tempo de entrarmos em um prédio antigo.

Até o elevador era antigo, e fazia um barulho assustadoramente terrível. No passado eu teria medo, mas depois de tudo que passei eu não tinha medo de mais nada, e nem nada a perder.

Fiquei imaginando o que meu pai pensaria ao me ver naquele lugar, ao ver tudo que fiz, senti vergonha, esperava que onde ele estivesse não pudesse me ver daquela forma.

Chegamos ao sétimo andar, era um corredor com várias salinhas fechadas, o lugar era mal iluminado e sem conservação nenhuma. O homem abriu uma porta, onde dois homens trabalhavam em um local que parecia uma gráfica.

Falou algo aos homens, e saiu.

-Boa tarde Moça, você precisa de que tipo de documento? - me perguntou um rapaz jovem, de óculos quadrados, era um nerd mas algo em seu olhar continha muita malícia.

-Preciso de um RG, certidão de nascimento…acho ... .preciso de uma nova identidade.. - eu disse e engoli em seco, será que eu fui enganada e vão me entregar para a polícia?

Ele ficou me olhando extasiado por um tempo, e de repente pareceu despertar.

-Ok, nossos documentos são válidos em todo o território nacional, você consegue inclusive fazer empréstimos, cartão de crédito…

-Quanto custa, e quanto tempo fica pronto? - eu disse o interrompendo, não tinha tempo a perder.

-Fica pronto, em uma hora, são dois mil reais, só aceitamos dinheiro.

Parecia que eu estava adivinhando, tirei os dois mil do bolso da blusa de moletom que eu usava e estendi ao rapaz.

Ele pareceu surpreso, contou as notas com uma calma angustiante, sorriu, e me disse para sentar em uma cadeira que tinha ao lado do balcão.

-Quer um pente? Vamos tirar uma foto para sua nova identidade - ele disse observando a minha aparência, me estendeu um espelho e saiu.

Quando voltou trazia uma caixa com pente, escova, pó de rosto e batom.

Quando olhei minha aparência entendi o motivo, eu estava pálida, suja e com os cabelos gordurosos, e bagunçados. Além de tinta de cabelo marcando minha testa.

Fiz o melhor que pude e tirei a foto, em pouquíssimo tempo peguei o elevador de volta, com uma nova identidade.

"Natacha Aires", esse agora era o meu novo nome, e eu agora tinha 24 anos, perfeito!

Andei rápido em direção ao carro, como se estivesse com pressa, sendo que na verdade eu nem ao menos sabia para onde ir.

Eu estava completamente sozinha, e sem rumo, meus parentes eram todos distantes, e o que eu menos queria era contato com qualquer um deles, depois da traição da minha mãe, eu precisava me manter longe.

A placa indicava litoral paulista e Rio de Janeiro, decidi pelo litoral, eu sempre gostei de praia.

Poderia arrumar um hotel, um emprego, e seguir a vida ou o que restava dela, eu não tinha mais nenhuma perspectiva.

Na estrada notei que eu estava dirigindo, e bem! O único contato que eu tinha tido com um carro antes daquele dia pavoroso foi nas aulas da auto escola, e agora eu estava dirigindo na estrada, meu pai ficaria orgulhoso!

A primeira coisa que fiz ao avistar o mar, foi parar o carro de qualquer jeito e olhar aquela imensidão, o céu estava negro, a noite fria e só havia eu naquele ponto da praia. Não pensei duas vezes, corri em direção ao mar, e mergulhei em sua imensidão…

Passei por diversas cidades do litoral, por um instante até esqueci todo o horror dos últimos dias, eu estava respirando ar puro, quem sabe poderia ter um novo começo…mas logo afastava os pensamentos, não havia recomeço, pena que eu não fosse corajosa o bastante para pôr fim a minha própria vida!

Naquele momento eu precisava decidir em qual local parar, já estava cansada, e estava ficando cada vez mais tarde, eu também não poderia vacilar com uma bolsa cheia de dinheiro no carro!

Decidi ir o mais longe possível, em um trecho da estrada uma pequena placa indicava uma praia "Repouso do sol", decidi entrar naquela estrada escura, e me deparei com um sistema de balsas.

Uma ilha!

Seria o local perfeito para me esconder de tudo que havia acontecido, além de ser provavelmente um local pequeno, e discreto.

Ao sair da balsa, comprovei que era realmente um lindo lugar, praias muito próximas e lindas a noite, de dia então deveriam ser um espetáculo!

Perguntei por um hotel em um pequeno restaurante que parei para comer, o dono ao perceber que eu pretendia morar me deu o telefone de um amigo, que alugava pequenas casas conhecidas como chalés já mobiliados, "vai sair mais barato que um hotel", o homem disse.

Só neste momento notei que ainda estava sem celular, lembrando que havia ficado na casa da minha mãe, pedi então ao homem se poderia fazer a gentileza de ligar para o dono dos chalés, ele aparentou achar estranho eu não ter um celular, mas concordou em fazer a ligação.

Após uns dez minutos, voltou:

-Olha, ele insistiu para deixar para amanhã, e eu insisti que você precisa de um lugar hoje, ele aceitou te receber, não demora antes que ele mude de ideia! - disse o homem, que deveria ter na faixa de 50 anos.

Ele me explicou como chegar até o local, e o recompensei com uma farta gorjeta, ele ficou sorrindo surpreso. "Será um prazer recebê-la novamente", disse acenando enquanto eu saia com o carro.

Chegando ao local, o dono das casas já me esperava do lado de fora com uma expressão impaciente, e com roupas de dormir.

-Prazer, Natacha, me perdoe o horário, só agora consegui chegar! -eu disse estendendo a mão.

Ele me olhou desconfiado enquanto parecia me estudar, depois retribuiu o aperto de mão.

-Sou o Régis, Natacha, vamos entrar, vou te mostrar a casa, e pegar suas referências, pelo que o tom disse você estava com pressa de achar um lugar…não costumo fechar contratos essa hora da noite - ele disse andando na minha frente com mais impaciência ainda.

Referências…isso seria um problema, peguei a mochila e entrei com o homem.

-É pequeno mas como pode ver os móveis são de boa qualidade, a vizinhança é tranquila e aqui tudo é perto, você veio a trabalho? - ele me perguntou

-Sim, sou escritora - eu disse.

-Ah entendi - ele me olhou com uma expressão, respeitosa e ao mesmo tempo desconfiada do tipo " escritor tem dinheiro para pagar aluguel?" - cobro três meses adiantado.

-Isso não é problema.

Estiquei um bolo de dinheiro para o homem sem nem ao menos contar, ele contou as notas e me devolveu uma parte.

-É mil reais o aluguel. - disse me olhando desconfiado, mas aparentemente feliz com o dinheiro - Todo dia 5, não aceitamos atraso. 

-Sem problemas - eu disse, ansiosa para que ele me deixasse sozinha para tomar um banho e dormir.

-Certo, me dê o seu documento, amanhã trago o contrato.

Com certo medo, entreguei o documento ao homem, me senti entregando algo falso a um especialista.

Ele estendeu a mão para um cumprimento, e abriu um sorriso.

-Bem vinda Natasha, espero que escreva um bom livro nesse lugar, agora vou deixá-la descansar, até amanhã. - e me estendeu as chaves.

-Até amanhã! - fechei a porta e corri para o banheiro, tirei toda a roupa e deixei a água correr, não tinha sabonete nem nada, não importava. Sai do banho deitei na cama macia e apaguei.

Acordei com o sol entrando pela janela aberta, por um instante tudo que aconteceu parecia um pesadelo, mas ao olhar em volta todas as lembranças vieram como um tapa no meu rosto.

As lágrimas escorreram involuntariamente, as sequei e lavei o rosto, eu precisava de comida, e claro, roupas!

Saí sem saber ao certo aonde ir, verifiquei o nome da rua e resolvi sair a pé, seria bom conhecer o lugar, respirar um pouco.

Não muito longe encontrei uma cafeteria pequena, modesta, mas incrivelmente aconchegante. 

Com mesas brancas em estilo colonial para o lado de fora, e plantas em volta, me sentei com vergonha pela minha aparência péssima.

-Bom dia, aqui está o cardápio, qualquer coisa só me chamar, sou a Suzie - disse a atendente simpática, ela deveria ter uns 20 anos, era loira e bem magrinha.

-Obrigada Suzie eu sou a he..Natacha! Escuta - disse enquanto olhava o cardápio com vergonha - onde encontro uma loja de roupas aqui? 

-Aqui na rua de trás, tem uma ótima! É a loja da Diva, ela é uma senhora de muito bom gosto, você vai gostar das roupas, tenho certeza - disse a Suzie com sinceridade, ela não parecia se importar nenhum pouco com a minha aparência, admirei ela logo de cara, sua inocência e compaixão eram evidentes.

-Obrigada, vou ir lá. Quero um capuccino, pão de queijo, croissant de queijo, e um pedaço daquele bolo de chocolate no balcão! - eu estava morrendo de fome!

-Certo, trago em um minuto! - Ela saiu com o sorriso no rosto enquanto olhava rapidamente o celular no bolso.

Não demorou para Suzie voltar com o meu pedido, tudo parecia, e estava maravilhosamente gostoso!

Terminei e fui até o balcão.

-Obrigada Suzie, faz tempo que não tenho um café da manhã tão bom! - eu disse com sinceridade, dando uma gorjeta generosa para a atendente simpática.

-Imagina, eu quem agradeço - ela disse ainda mais sorridente - volte sempre!

Disse enquanto eu saía apressada.

Aquele café da manhã de alguma forma havia me revigorado, talvez fosse possível recomeçar, talvez um dia eu pudesse sentir menos tudo que havia acontecido.

De longe avistei a loja, parecia muito chique para uma cidade praiana "Diva store", atravessei a rua encantada com a fachada, quando ouvi um cantar pneus e uma forte pancada me jogou longe.

-Essa lesão é muito grave? - dizia uma voz distante…

-Olha, lesões dessa natureza demoram acostumam causar amnésia, temos que torcer para ser temporária..como ela não tinha documentos, a polícia poderá se encarregar de descobrir quem ela é.. - dizia uma voz grave.

Meu coração disparou.

-Não, nada de polícia, eu resolvo doutor, darei toda assistência a ela, e descubro onde a família mora - disse a voz distante, que agora parecia fria e impaciente.

-Como o Senhor quiser, agora eu preciso ver outro paciente, pode ir pra casa se quiser, ligamos quando ela acordar.

Esperei que os dois saíssem e abri os olhos, como dizia o meu pai "não há nada tão ruim que não possa piorar"..Ah meu pai..meu coração doeu mais do que aquela terrível dor na cabeça que eu estava sentindo…

As lágrimas rolaram, eu precisava sair daquele hospital, antes que alguém chamasse a polícia e tudo viesse à tona.

Tentei me levantar, coloquei um pé, depois o outro, e cai com força no chão, tudo doía, o soro escapou junto com o tubo do nariz.

-O que você está fazendo? - alguém veio na minha direção e me ajudou para que eu me levantasse, imediatamente fiquei inebriada com aquele perfume…Ah que perfume! - você não pode levantar desse jeito, está ouvindo? - disse o homem me olhando com frieza, enquanto apertava um botão, para chamar um médico.

Eu não conseguia falar, além da dor terrível, eu nunca tinha visto um homem tão lindo em toda a minha vida.

Ele era perfeito, cabelo penteado para trás, olhos verdes profundos, alto, e parecia ter um corpo incrível por baixo daquela roupa social.

Quem era ele, e o que estava fazendo ali?

Eu ainda não conseguia falar, tentei mas minha boca ficou tão seca, que não consegui pronunciar uma só palavra. - Ele pousou o dedo nos meus lábios.

-Fica quietinha, logo o médico vem recolocar esse soro…eu sou o James, bem, eu atropelei você esta manhã…não querendo te culpar mas você atravessou sem olhar para os lados… - ele dizia passando a mão nos cabelos, parecia perdido - eu te trouxe para o meu médico de confiança, vou fazer tudo que puder, só não quero envolver a polícia, você entende? Essas coisas em cidade pequena não são legais, minha família é digamos …tradicional, o doutor César disse que você vai ficar bem, eu vou cuidar de tudo pra isso, prometo - dizia ele pegando em uma das minhas mãos.

Ele era lindo, mas um babaca!

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