5

Em seu sono fraco, Amara teve uma noite turbulenta regada de pesadelos. O último sonho deixou-a completamente aflita, a angústia entalada em sua garganta alcançava o seu peito depressa e se espalhava por todo o corpo como um veneno. Em seu sonho, chegou a Dhafik junto à Riad como lhe foi prometido, contudo, algo estava errado.

A cidade estava vazia.

Amara direcionou o seu olhar assustado na direção de Riad, mas seus olhos muito gentis já não emitiam o mesmo brilho sincero, as órbitas estavam completamente vazias, e o escuro encarou-a como se estivesse na beira de um precipício. Deu um passo para trás muito assustada.

Sentiu o coração desesperado bater depressa no peito, tentou dizer algo, mas não havia voz. Emitia apenas um ruído engasgado seco, nem uma palavra sequer pôde ser articulada. Mãos pesadas seguram os seus braços com violência, dois homens sem rosto a agarraram depressa, agradeceram à Riad com um aceno e a arrastaram para longe, seus pés congelados se arrastando contra o cascalho.

Desapontada, continuou olhando para o seu raptor sem nada poder fazer a respeito, viu de perto suas promessas se desfazerem como fumaça. Jogaram-na em um buraco no chão como faziam com os prisioneiros, taparam a entrada sob sua cabeça com uma pedra pesada. Algo se moveu entre os pés da jovem, amedrontada, ouviu os sibilos das cobras rastejantes que se enveredavam entre suas pernas e percorriam todo o recinto escuro. Horrorizada, gritou.

E foi quando acordou. Não havia cobras, muito menos cativeiro. Estava de volta à caverna, o cavalo batia os seus cascos na pedra se movendo mais para o fundo, Riad ainda dormia calmo. O dia ainda nem sequer havia raiado, mas o azul-escuro do céu clareava um pouco mais a cada instante, revelando as sombras um pouco menos assustadoras.

Cobras eram presságios sombrios, ensinava-lhe a mãe quando ainda era criança. Eram indícios de que o mal espreitava nas sombras, exigindo orações fervorosas. Desde então, nutria um profundo ódio por esses seres rastejantes, uma aversão que se confirmou quando uma serpente venenosa ceifou a vida de seu pai, unindo-o para sempre à sua mãe e a deixando completamente desamparada no vasto mundo. Sentia o peso da solidão, lamentando a ausência da mãe que, com sua sabedoria ancestral, decifrava os significados ocultos de seus sonhos.

Interpretou o pesadelo recente como um aviso, um sinal claro para agir com cautela. Ao deitar-se ao lado de Riad, observou o rosto do adormecido por longos momentos, seus olhos ajustando-se gradualmente à penumbra. Riad dormia profundamente, alheio à sua condição de prisioneiro, mais uma vez confiando inadvertidamente na jovem astuta. Seu coração oscilou no peito, uma sensação desconfortável que não lhe agradou.

Amara havia cruzado o caminho de poucos homens em sua vida, talvez não mais do que duas dúzias. No entanto, nenhum deles despertara nela o fascínio que Riad agora provocava. Seu rosto parecia esculpido por mãos divinas, com um nariz anguloso e maxilar quadrado, como se um hábil escultor tivesse modelado cuidadosamente cada traço em argila. A barba de Riad, crescendo livremente mas bem aparada, denotava um cuidado com sua aparência que surpreendia Amara.

A riqueza subjacente à sua pele bronzeada sugeria uma origem abastada, de uma família possivelmente influente. As mãos exibiam cicatrizes evidentes, indícios de cortes provocados por diferentes lâminas. Seria ele um guerreiro? A ideia parecia pouco provável, dada a presença de uma considerável quantidade de moedas de ouro que carregava consigo. No entanto, a hipótese ganhava sentido ao considerar as habilidades e a notável resistência do homem diante das adversidades.

Era bonito, mas não o tipo de beleza convencional, coisa que Amara não saberia explicar. Sentiu certo remorso olhando-o tão de perto, um frio no peito como se caísse de uma certa altura, Riad parecia de fato ser um homem bom. Ergueu os dedos e, por um segundo, quase o tocou. Pensou sobre suas promessas, pensou sobre o seu pesadelo. Sabia que deveria levar as advertências de seus falecidos pais a sério, os homens eram maus, não deveria confiar em ninguém.

Afinal de contas, por que motivo um homem bom tentaria ajudar uma ladra desonesta feito ela? Não fazia nenhum sentido. A dura realidade a arrebatou para o mundo real, o mundo dos homens maus, e então soube o que tinha de fazer. Torceu apenas para que não se arrependesse nunca. Suspirou.

Queria ficar, mas não devia. Era sua última chance, e sempre escolheria a liberdade.

**

Riad despertou quando o sol iluminou a entrada da caverna, atravessando os galhos caídos como se tivessem sido deliberadamente movidos. Não demorou muito para notar estar sozinho. Desta vez, não praguejou ao notar a falta da jovem. Procurou-a por toda parte, mas nenhum sinal de Amara. A manta que cobria a entrada da caverna havia sido retirada.

O sultão tapou os olhos do sol, protegendo-se dos raios de sol, gritou pelo nome de Amara, mas não houve nenhuma resposta. A jovem havia fugido. Mais uma vez. Sentiu um grande vazio, não por acreditar nela mais uma vez, e sim porque realmente desejava fazer algo pela garota. Parte do que ela e o seu povo vivia, era culpa das ações de seu pai. Gritou mais uma vez o nome de Amara, saindo da caverna, encontrou o cavalo não muito distante arrastando as rédeas. Desapontado, recolheu suas coisas e depositou a carga no lombo do animal, partiu não muito depois. 

Havia sido sincero sobre o que disse à Amara noite passada, suas intenções eram genuínas, gostaria apenas de lhe proporcionar uma vida digna, longe de seus pequenos furtos e sequestros no deserto, não porque pretendesse proteger os viajantes, e sim simplesmente porque não conseguia esquecer aqueles olhos azuis cor de mar daquela garota. Por todo caminho naquele dia, se encontrou olhando para os lados, procurando-a entre as dunas sem sucesso, imaginando onde estaria. Criando cenários em que talvez a moça estivesse em perigo.

Sozinha. Sem ninguém.

Respirou fundo. Precisava esquecê-la, mas não era capaz. Porque estava tão obcecado? Tinha de voltar à realidade.

O grito de Karim foi o que lhe trouxe de volta às responsabilidades, e por um momento, se sentiu contente por isso. Contente por encontrar algo conhecido, algo que lhe remetesse à sua via em Abal e todo o seu império. O vizir acenou sorridente, se levantando depressa de cima de uma rocha grande e acenando com os braços, pareceu aliviado em vê-lo, correu na direção do sultão desajeitado, tropeçando nas pedras.

— Meu senhor! Por onde andou? Estive à sua procura, já começava a imaginar o pior!  — Falou o Vizir dando um forte abraço no amigo, terrivelmente aplacado.

Riad sacudiu a cabeça e deu-lhe um sorriso. Não queria contar a ninguém sobre a sua pequena aventura recente. Gostaria de guardar aquelas lembranças somente para si, onde as revisitaria em algum sonho onde a lembrança dos olhos azuis de Amara ainda permanecia viva em sua mente.

No fundo, estava profundamente desapontado.

— Estou bem, meu amigo.  Tive um pequeno imprevisto — começou a dizer com calma — Talvez eu tenha me perdido, faz muito tempo desde que estive nessas terras. Não parecem mais as mesmas

— Algo me diz que está mentindo, mas sei que é provável que seja algo que não preciso saber — Karim sorriu brevemente desconfiado e bateu suavemente no ombro do sultão —  Receio que temos um problema maior à vista. Os homens estão mais adiante em um acampamento não muito longe daqui, há algo que precisa saber.

A expressão facial do homem transformou-se rapidamente, seus ombros robustos assumiram uma postura defensiva. Isso não augurava bem, considerando que Karim, conhecido por sua imponência, força e tez escura, costumava exibir um semblante sempre amistoso, marcado por um sorriso generoso. Entre todos os conhecidos de Riad, Karim destacava-se como talvez o único amigo verdadeiro ao longo de sua existência, alguém capaz de expressar a verdade de maneira direta.

A amizade entre eles remontava à infância, quando Karim, filho de um dos servos do palácio, teve a oportunidade de treinar com a guarda, evidenciando-se por sua habilidade estratégica e destreza em lidar com situações conflituosas. Ao longo do tempo, Karim alcançou o cargo de Vizir por méritos próprios, enquanto Riad estava ausente. Quando o líder regressou, ficou imensamente satisfeito em contar com a presença do antigo amigo ao seu lado, fortalecendo ainda mais os laços de confiança entre ambos.

— Aconteceu outra vez. — Karim alegou.

Riad estremeceu. Aquelas palavras ressoaram em sua mente como sinos.

— Quem?

— Samia. Encontraram-na sem vida no quarto. Nenhum ferimento, nenhum sinal de invasão. Estou preocupado, é a segunda em um mês, Riad. O palácio já não é mais seguro.

— Nenhum lugar é seguro o bastante, meu amigo. Quando cheguei à minha posição, assumi o risco. Querem me atingir pelos cantos matando as mulheres de meu harém, não irão me ferir, faz parte de sua perversa estratégia para desestabilizar-nos de dentro com a desconfiança. — Respondeu Riam segurando involuntariamente a sua adaga na cintura.

— Só espero que esteja certo, não podemos perdê-lo neste instante.

— Nada acontecerá a mim. Encontraremos o traidor.

**

Os pés cansados de Amara ardiam em suas sandálias gastas, estava exausta, sozinha e longe de casa. E por mais improvável que pudesse parecer, chegou a Dhafik em segurança.

Ao atravessar o vasto deserto, Amara conseguiu persuadir um pastor de cabras que se aventurava pelas montanhas em direção à cidade a conceder-lhe carona. O homem, com compaixão, permitiu que a jovem se juntasse a ele em sua jornada, oferecendo-lhe um lugar na parte traseira de sua carroça. Desgrenhada, coberta de sujeira e assustada, ela sentiu uma centelha de esperança quando as áridas planícies deram lugar a um extenso rio, uma visão que até então lhe fora negada. Fascinada, observou as mulheres, muitas acompanhadas por crianças, lavando suas roupas em generosas bacias de barro.

A paisagem desértica gradualmente se transformou, cedendo espaço a árvores vibrantes, cores vivas e a presença de uma comunidade. O pastor a deixou não muito distante da cidade, e Amara expressou sua gratidão com um sorriso enquanto ele partia. Sedenta, ela logo buscou saciar sua sede nas águas do rio. Imersa na correnteza com suas vestes, permitiu que os raios do sol as secassem enquanto contemplava pela primeira vez seu reflexo na água cristalina. Os cabelos molhados aderiam às laterais de seu rosto cansado, e seus olhos azuis encontraram o próprio olhar. Tentando manter uma perspectiva positiva, murmurou suas preces e seguiu o majestoso curso do riacho.

À medida que Dhafik se revelava diante dela, a cidade não se assemelhava ao pequeno vilarejo em que crescera. As construções, pintadas pelo amarelo dos raios de sol, assumiam tons avermelhados, erguendo-se como blocos de tijolos de barro empilhados. O rio dividia a cidade em duas porções, conectadas por uma ponte larga que conduzia aos imponentes muros de uma gigantesca fortaleza. O cenário era um espetáculo de cores e contrastes, uma nova fase na jornada de Amara em busca de uma vida diferente.

Cobriu o rosto em seu lenço tratando de camuflar-se entre as pessoas do povoado, rastejando pelos cantos nas ruas de terra, admirando os artistas que encantavam pequenas plateias, girando o seu corpo curiosa para entender a dinâmica daquele lugar desconhecido que parecia vibrante aos seus olhos. Comerciantes se espalhavam em tendas de tecido empoeirado por toda parte, havia todo o tipo de comércio, de animais a especiarias.

Amara sentiu fome. O estômago reclamou, contrariado.

Imaginou-se em uma túnica bonita, limpa e bem vestida ao passar pelas barracas de tecidos, assim como as mulheres que passavam por ela, que mesmo em suas vestes simples, era muito mais do que a jovem já havia tido. A esperança logo foi se esvaindo de seu peito, o que faria naquele lugar? Estava disposta a recomeçar, deixar de lado o seu passado de ladra indigna e viver honestamente, talvez as palavras de Riad tenham lhe surtido mais efeitos do que poderia imaginar.

Riad...

O coração sacudiu no peito. Precisava esquecê-lo. Só de recordar a cor daqueles olhos já sentia o seu corpo estremecer.

Detendo-se diante de uma tenda, Amara contemplou os pães à venda, sentindo uma fome voraz. Seus olhos percorreram o ambiente movimentado, capturando a cena do comerciante que, em meio a uma conversa com um ajudante magro, transportava caixas de madeira para o interior do estabelecimento. O garoto esforçava-se para arrastar as caixas vazias. O início não era promissor, mas a moral incorruptível de Amara vacilou quando a fome retorceu em seu estômago, revelando um vazio inegável.

Com agilidade, ela subtraiu um dos pães, ocultando-o sob o vestido e protegendo-o com seu lenço. Sem pressa, afastou-se naturalmente, deslizando pelos cantos até alcançar um estreito beco. Lá, partiu um pedaço do pão seco e o consumiu, seu estômago protestando. O resultado inevitável de um tempo prolongado sem alimentação, onde o corpo parecia esquecer como se nutrir. Apesar disso, a garota saciou sua fome rapidamente e retornou às ruelas.

Era perigoso permanecer por muito tempo em um só lugar para uma jovem de beleza exótica como ela, visto que estrangeiras eram preferidas como alvos para a escravidão. Embora não fosse estrangeira, Amara herdara muitos dos traços de seu pai. Retirando o lenço que envolvia seus cabelos, prendeu-o ao redor do pescoço e ajustou a túnica, soltando os cabelos. Assim, ela se camuflou entre os locais na pequena feira. A visão da guarda do palácio, armada com longas espadas e vestida com trajes de batalha, a inquietou. Um breve tremor percorreu seu corpo, imaginando que seriam notadas. Contudo, a guarda passou por ela sem perceber sua presença, e Amara soltou um suspiro aliviado.

Ao olhar para trás enquanto se afastava, esbarrou com força em alguém, resultando em um choque suficientemente impactante para derrubar ambos no chão. Um grito estridente ecoou, denunciando o ultraje mais puro.

— Imunda! — A mulher olhou-a com desprezo.

Amara jamais havia visto tanto ouro e joias. Havia tanto ouro redor do pescoço da mulher e em suas pulseiras cravejadas com pedras, que seriam o bastante para alimentar todo um vilarejo por meses. Uma dezena de criados parou ao redor de sua senhora, completamente perplexos, em seus olhos existia o mais puro terror.

— Sinto muito — Tentou se explicar ajudando a mulher a se levantar, preocupada — Não tive a intenção de...

— Tire suas mãos de mim — Berrou ela olhando-a com seu olhar de superioridade, era jovem e bonita, não muito mais velha do que a própria amada. Levantou-se com a ajuda de uma criada, batendo suas mãos contra o vestido tecido em fio nobre — Como ousa ser tão insolente?

Amara engoliu seco, não desejava problemas, mas pelo visto era incapaz de viver longe deles.

— Eu lhe peço desculpas novamente pela minha falta de atenção. Sou mesmo uma desajeitada, perdoe os meus modos.

— Não lhe dei permissão para dirigir a palavra a mim. Estragastes o meu vestido favorito!

Farta, Amara colocou as mãos sobre os quadris e ergueu o seu rosto furiosa.

— Não tem o direito de falar comigo desta forma. Já lhe pedi desculpas, minha senhora.

— E quem é você para dizer a mim como devo ou não falar, ser insignificante? É mesmo muito corajosa em zombar de sua senhora. Tome cuidado, ou terminará o dia com a cabeça fora de seu belo pescoço. — Falou segurando o queixo da garota com violência.

Com agilidade surpreendente, a jovem extraiu seu punhal da bainha e, de maneira decidida, avançou na direção da mulher. O gesto foi tão rápido que causou espanto em todos ao seu redor. Com maestria, ela posicionou a lâmina afiada junto ao pescoço da mulher, uma dança perigosa que quase tocava os colares dourados adornando sua pele. O ambiente instantaneamente se petrificou, transformando todos os presentes em estátuas de surpresa e incerteza.

As criadas, percebendo a gravidade da situação, soltaram suspiros alarmados, agitando os rostos como se implorassem para que Amara interrompesse sua ação ousada. O silêncio tenso pairava no ar, enquanto a lâmina reluzia perigosamente à luz, lançando uma sombra ameaçadora sobre a cena. O encontro de olhares congelados capturava a intensidade do momento, onde cada segundo parecia se estender em suspense, aguardando a próxima jogada nesse tabuleiro tenso de emoções e decisões.

— Nunca mais volte a tocar em mim. — Sussurrou baixinho bem próximo à mulher.

— Não tem a mínima ideia de quem acaba de ameaçar, suja. — Sorriu ela — Se arrependerá amargamente por sua insolência. Guardas!

Amara talvez tenha aprendido depressa que todas as suas habilidades de combate aprendidas por anos de nada serviriam frente à meia dúzia de soldados. Olhou para si própria inconformada, não estava suja, tampouco fedia, não havia feito nada àquela mulher que não fosse o que merecia. Não suportava ser tocada contra a sua vontade, principalmente quando a tratavam com tamanha grosseria descabida. E foi o que conduziram os soldados, que surgiram ao seu redor cada vez mais fechando o cerco.

Não tinha para onde correr.

— Não pode fazer isso, não tem esse direito! — Berrou Amara furiosa — Apenas deixe-me ir, jamais me verá outra vez nestas terras.

A mulher se virou de costas, sacudiu os ombros e fez um pequeno gesto aos soldados.

— Executem-na.

Sob os protestos desesperados da jovem moça perdida, agarram-lhe feito bicho e a trancafiaram. Tentou lutar, tentou fugir e se rebater, mas os homens eram mais fortes, carregavam facas afiadas em suas cinturas e espadas pontudas nas costas. Não teve a menor chance. Sua pior decisão seguiu o caminho longe de casa, desamparada, não fazia a mínima ideia de que acabara de ameaçar a primeira esposa do sultão, um crime passível da maior pena, pagar com a vida.

Alice Dubois

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