CAPÍTULO 1

Enquanto seus pensamentos viajavam nas mais loucas histórias do seu passado ao lado da mulher da sua vida, Anna, entrou um senhor de idade ainda mais avançada que a sua, se é que ele achava possível, já que depois dos oitenta anos é natural a pessoa se achar a mais velha do mundo, ele estava com uma bengala de madeira simples, sem nenhuma ornamentação luxuosa e com algumas coisas estranhas escritas nela, talvez em uma língua que ele jamais tinha visto.

O velho se sentou em uma poltrona ao lado da sua cama e descansou seu corpo aparentemente cansado por alguns instantes, visivelmente parecia aliviado por sentar-se ali, depois ele apoiou sua cabeça sobre a bengala que trazia consigo e ficou olhando para ele como se enxergasse muito mais do que apenas um decrépito Daniel.

Seus olhos pareciam refletir uma verdade que ele jamais tinha visto em toda a sua vida, ao mesmo tempo que tinha ficado com medo, também se reconfortou neles.

— Quem é você? – Perguntou Daniel da forma mais grosseira.

A reação dele foi completamente oposta ao que Daniel imaginava que seria.

— Como você pode perguntar quem eu sou, se nem mesmo você sabe quem é?

Era só o que me faltava agora – pensou Daniel – um louco no meu quarto tirando sarro de mim enquanto estou prestes a morrer, de filosofia já estou cheio...

— Não sou um louco e nem estou tirando sarro de você.

De repente, Daniel não sabia se tinha realmente pensado aquilo ou se tinha falado em voz alta o que pensou.

O velho sorriu parecendo se divertir com algo que já tinha feito milhões de vezes.

— Olha, senhor... qual o seu nome?

— Tenho muitos nomes, pode escolher o que se sentir mais à vontade.

Daniel bufou indignado.

— Senhor sei lá o que de muitos nomes, estou com um quadro clínico muito complicado, minha esposa faleceu faz pouco tempo...

— Eu sei, eu estava lá, deveria se lembrar disso.

Daniel não deu a menor importância para aquilo, se o velho queria disputar quem era mais teimoso ele tinha escolhido a pessoa errada para tal embate.

— Meus filhos não estão nem aí para mim – deu uma pausa tentando achar as palavras certas, para não ser mais rude do que já estava sendo – se o senhor quer saber a verdade... nem Deus se importa comigo, então, por favor, vai passear por outras bandas... vai aproveitar sua vida, ou o que resta dela, com alguém que vale a pena, sou apenas mais um velho inútil nesse inferno apelidado de Terra.

— E o que te faz pensar que não estou aproveitando com quem eu gostaria de realmente estar, Daniel?

Daniel percebeu que não seria fácil se livrar do homem.

— Como disse anteriormente, meu jovem – disse o velho da maneira mais amável do mundo e com um sorriso irritantemente agradável –, só você parece não se conhecer, quem é você para dizer que Deus não se importa?

Daniel ia falar, mas o senhor deu prosseguimento cortando-o:

— Parece que você gosta de falar somente baboseiras, o que não combina para um intelectual como você, meu querido Daniel, ainda mais falar em nome de alguém que nunca te deu qualquer permissão para falar em seu nome, ou no caso, em meu nome.

Num raro momento, Daniel parecia transparecer humildade, eram poucas pessoas que tinham o poder de saber conversar com ele no mesmo nível.

— Me desculpe se te ofendi, eu...

— Claro que eu desculpo, está tudo bem, parece que agora você recobrou um pouco do juízo.

Daniel sentou-se, tomou um pouco de água e olhou bem nos olhos do velho, respirou fundo e disse:

— Como consegue ser tão feliz sendo tão velho?

— É a coisa mais simples do mundo, Daniel, basta olhar ao seu redor e ver tudo o que você cativou, não foi o que Antoinè de Saint-Exupéry disse?

— Somos eternamente responsáveis por tudo que cativamos?

— Então – continuou o velho –, quando plantamos boas sementes na vida, fica fácil colhê-las no futuro, vê-la esta bengala, por exemplo, foi um presente do meu filho que é carpinteiro...

— Se você é Deus, não precisa de uma bengala.

— Sim, não preciso, mas ganhei um presente de alguém especial, então posso ser grato pelo presente, mesmo que não precise.

Daniel ficou pensativo por alguns instantes.

— É por isso que nem meus filhos vêm me ver então, fui o homem mais chato e irritante desse mundo... se nem mesmo eu me aguento, imagina eles? Tenho medo de receber algum presente deles baseado no que dei.

— Nem todas as pessoas sabem conviver com nossas excentricidades, isso faz parte de qualquer velhice, Daniel, deveria saber disso depois de tudo o que passou com seu pai.

Daniel assentiu novamente ao ter a remota lembrança de seu pai que havia desfalecido em decorrência da dependência do álcool e nunca conseguiu ter uma história real de pai e filho com ele.

— Não foi culpa sua, Daniel, foi a opção dele, só temos que respeitar, simples assim, existem coisas que são porque elas realmente são e não podemos mudá-las.

— Você pode, é Deus.

— De que adianta ser Deus se as pessoas não chegarem a essa conclusão sozinhas?

— Seria um mundo repleto de bonecos.

— Você gostaria de ser Deus em um mundo assim?

— Acho que não.

— Eu muito menos... sou chamado de pai e adoro quando me chamam assim porque participo da vida delas e é engraçado que não sou o pai biológico delas, mas elas decidiram me adotar como pai, isso é a melhor parte em ser Deus.

SEM PERCEBER, Daniel contou toda a sua vida para aquele senhor, ele não o interrompeu nenhum momento sequer, ficou observando cada movimento que ele fazia. Alternava entre ficar sentado e ficar andando pelo seu quarto.

Daniel estava tão carente de amizades que aquele senhor passou a ser o seu melhor amigo naqueles longos oito meses sem Anna.

— Só não entendi porque você tem tanta raiva de Deus tendo uma vida tão maravilhosa quanto a que teve? – Disse o velho com aquele sorriso que já nem o incomodava mais.

— O senhor não ouviu minha história?  

Disse Daniel bufando de indignação, achando que o homem deveria ser algum tipo de débil mental.

— Estou longe de ser louco.

Daniel ignorou novamente aquela invasão fortuita à sua mente e continuou.

— Fui um fiasco como ser humano, humilhei muitas pessoas que quiseram o meu bem, gastei quase toda a minha fortuna com bobagens sem valor, não fiz por merecer tudo o que tive.

— Seu único problema é que é orgulhoso demais para chegar nos seus filhos e pedir perdão, só isso... qual o problema em errar? Que ser humano não falhou na vida, Daniel?

— Isso é verdade – disse num tom de reflexão –, mas... como o senhor me conhece tão bem?

— Agora você fez a pergunta certa, meu filho...

— Para de brincadeiras, por favor.

O velho deu uma gargalhada se divertindo com o seu mau humor e Daniel não estava acostumado em acharem graça em seu mal humor, com exceção de Anna.

— Essa é uma resposta bem simples, e a mais fácil de ser respondida no mundo.

Daniel ficou olhando para ele esperando a resposta.

— Eu sou Deus...

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