PARTE 08: TERAPIA

Bill gostava do cheiro da lasanha de frango que Eva costumava preparar às terças, porque o fazia lembrar do dia em que eles saíram juntos para a lanchonete do Ed, quando acidentalmente ela queimou o que seria uma torta salgada. Talvez se a torta não tivesse queimado, eles não teriam saído, se divertido e aprendido uma nova receita. Bill acreditava que certas coisas aconteciam por um proprósito e aquele em especial, era o melhor deles. 

— Nada de celular à mesa — disse Eva, limpando a boca em um guardanapo e encarando-o. Ela estava preocupada com ele. Tinha recebido a notificação do colégio acerca da briga e um telefonema da senhora Bailey informando que ele esteve lá na casa dela, quebrando as coisas do Edward. Ele não estava na melhor das fases. Eva estava no limite e uma mãe no limite sempre faz algo que se arrepende depois, mas não por ser ruim ou má educadora, mas por querer poupar os filhos de desgraças quase inevitáveis.

— Eu sei que estou de castigo, mas já terminei de comer — ele se defendeu, guardando o celular no bolso. Ele pôde senti-lo vibrar ao receber uma mensagem de Melissa. Eles costumavam trocar mensagens à noite.

— Mas ainda está à mesa — rebateu ela. — Já fez seu dever de casa?

— Sim, senhora...

Bill se levantou e recolheu os pratos da mesa, indo até a pia e lavando-os. Ele não queria provar nada para a mãe, muito menos adquirir uma redução na pena do castigo. Apenas tentar colocar a cabeça no lugar e focar na espuma do detergente. Talvez isso o retirasse dos pensamentos desagradáveis. Se Eva soubesse das coisas estranhas que estão acontecendo, ele pensou por um instante, ela poderia até entender, mas o julgaria, então, ele não queria compartilhar seus devaneios dos últimos dois dias com ela e com mais ninguém. Seria muito para a cabeça dela. Como explicar o que não é explicável? Até onde Bill sabia, pessoas com o juízo intacto não costumam ver coisas e ele... não, se ele estivesse ficando louco como a tia Cassandra, seria demais para todos.  Diziam que Cassandra surtou depois da morte do marido. Desenvolvera escrozofrenia. Estava tão confusa que andava de cancinha na rua. Bill respirou fundo e apertou a esponja, sentindo a espuma derreter em sua mão. Ele não queria estar louco. Poderia haver uma outra explicação e ele descobriria.

— Não estou brava com você, Bill — disse Eva, chegando por trás e o abraçando. Ele sentiu que ela dizia a verdade.

— Eu só estou cansado — respondeu ele, e não tinha certeza se era exatamente isso. Ele estava muito mais que cansado.

— Pirulito estava velho... mas se você quiser, podemos ter um novo cão, o que acha?

— Seria bom. Ou melhor. Seria genial! — Disse Bill e sorriu, mas lembrou-se das responsabilidades por trás de cuidar de um cão e eram muitas. — Mas podemos esperar um pouco.

— Claro! Podemos esperar o tempo que quiser — respondeu Eva, bocejando. — Agora deixa eu procurar meu celular e falar com seu pai. Se Larry acha que vou espera-lo até tarde da noite, ele está redondamente enganado.

Bill riu e ligou a torneira, lavando os pratos que estavam ensaboados.

— Eu acho que vi seu celular na mesinha de centro na sala — falou Bill, e continuou —, se conseguir falar com ele, pede por favor para ele trazer algumas balas de gengibre.

— Está com dor de garganta, o quê? — Indagou ela, indo até a sala enquando Bill ouvia sua voz ficar mais baixa.

— Não... Um pouco — foi o que ele respondeu, mas Bill tinha uma mania estranha. Se sentia sonolento com balas de gengibre e acreditava que poderia ajuda-lo a dormir melhor. Se seus país o vissem tomando qualquer calmante, o interrogatório começaria na manhã e se estenderia durante a noite, só para concluírem que há algo de errado que eles não conseguem corrigir ou entender.

— Gengibre — sussurrou Bill e sorriu, ao lembrar do gosto. A lâmpada da cozinha piscou, como se a rede elétrica ameaçasse cair. Ele parou o que estava fazendo e prestou atenção no evento. Bill olhou para os lados e teve a sensação de estar sendo observado. Era apenas uma sensação. Havia uma janela de vidro frente à pia e neste reflexo, uma sombra pareceu passar por trás dele.

— Bill.

Bill derrubou um copo no chão ao ser abordado inesperadamente por sua mãe.

— Opa! Está tudo bem? Copos costumam ser escorregadios e é por isso que você nunca deve trazê-los para fora da pia! — Exclamou Eva, observando os cacos.

— Você me assustou! 

— Desculpe. Eu achei que eu não fosse tão feia assim.

— Não é isso, mãe...

— Eu estou brincando. Deixa isso comigo. Eu limpo.

— Tá legal. Eu acho que vou me deitar. Estou me sentindo um pouco zonzo — disse Bill, pegando uma toalha e secando suas mãos.

— Está bem, mas se precisar de algo é só chamar — respondeu Eva e sentiu-se preocupada por um momento. Bill estava estranho e ela percebeu isso. 

Bill subiu para seu quarto e pegou o celular. Melissa estava aborrecida por ele ter cancelado os planos para o Dia das Bruxas. Ele queria um momento para descanso.

Eu só estou estressado. Isso é normal. Todo mundo fica assim alguma vez na vida. Bill começou a acalmar a si mesmo, vendo que estava se sentindo cada vez mais apreensivo.

No closet onde ele costumava deixar suas botas favoritas, longes do alcance do Pirulito, ele ouviu passos — breves e miúdos, mas eram audíveis —. O que quer que fosse que estivesse ali, não seria o Pirulito, roendo suas meias, nem babando em seus velhos brinquedos que estavam numa caixa no canto do armário.

“Existia um cãozinho... e seu nome era Pirulito... Fino como um palito...”. Bill agora, podia ouvir alguém cantar uma música de ninar, tão baixa que só ele poderia ouvir, como um sussurro vindo do além. A música que seu pai inventou quando deu de presente seu amigo-cão, agora, doze anos depois, ainda se lembrava daquela canção e do cheirinho de pelo molhado que Pirulito tinha quando brincava na grama ensopada.

— Pirulito era bravo... bravo... — Bill completou, sussurrando e a voz parou. Em seguida, a porta do closet abriu devagar, como se alguém estivesse ali do outro lado, pronto para sair da escuridão e atacá-lo — foi o que Bill pensou, antes de tomar fôlego e ter coragem de encarar mais uma vez a porta que se abria em silêncio.

Ele se sentou na cama e apertou os olhos profundamente, mas nada aconteceu. Não havia nada ali... senão, uma pilha de roupa suja. Se ele ficasse ali mais alguns segundos, seus olhos se habituaram a escuridão do quarto e logo iria ver que não havia nada.

— Oi Bill! — A voz disse, agora, do lado dele. Era ele. Era o Tommy-balão. Sua boca estava aberta, os dentes enfileirados como um tubarão e seus olhos brancos como duas bolas de gude. Isso o assustou mais do que sua voz grave. Bill gritou, talvez o mais alto que pôde, espremendo para fora a tensão que sentia e tudo virou luz, como se um raio caíra ali mesmo no quarto, seguido de um trovão bravo e resmungão.

Sua mãe chegou ao quarto, acendendo a luz e vendo que ele estava se revirando na cama, como se estivesse possuído, foi o que pensou na mente dela ao ver os braços do filho para trás. Bill só estava tentando se reconectar. Ele não queria ficar doido, se aquilo o deixasse.

— O que houve, Bill? — Ela perguntou com a mesma voz preocupada de sempre, como se quisesse acolhê-lo do que o incomodava. Ela não o via assim desde os doze anos, quando ele tinha pesadelos constantes ou quando se assustava até com os palhaços que passavam na TV.

Bill não conseguia dizer nada, a não ser tremer de medo e aflição. Ele puxou sua mãe para próximo e a abraçou. Talvez ali, seria o lugar mais seguro para ele, e assim o era.

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Faltavam dois dias para o Dia das Bruxas, e Adam tinha a ideia para a redação, mas ela talvez fosse muito além do que Bill pudesse imaginar. Planos de uma mente que buscava provações a si mesmo, mas que, no fundo, nunca seriam saciadas.

Na clínica do doutor Passos, Bill esperava impaciente, ao lado de sua mãe. Ele detestava estar com ela em qualquer tipo de compromisso, pois seu ego o incomodava ao passar-lhe a infeliz impressão de que ele era um filhinho da mamãe. Entretanto, ainda que ele não quisesse, aquela visita era obrigatória.

Bill observava o galão d’água que havia na recepção. Ele soltava bolhas de ar vez ou outra, fazendo um barulho engraçado, como o estômago do seu pai quando comia algo com lactose.

— Bill Lewis — anunciou o doutor ao aparecer na porta. Ele era um homem simpático, mas de humor azedo. Seu grande corpo magro o passava a impressão de doente, mas ele sempre foi assim e Bill não o via desde... 2005.

A mãe de Bill o puxou pelo braço, despertando-o da fixação pelo bebedouro e o conscientizando da nova realidade: terapia. Se ele soubesse que sua mãe o traria novamente ao terapeuta, ele arrumaria um jeito de fugir de casa. Pegaria a velha mochila do porão, aquela que havia espaço suficiente para carregar várias coisas, diferente da quase inútil nova que não suporta metade dos livros que precisa em um dia.

— Deficit de atenção é algo muito comum... — Passos iniciou seu discurso, sentando-se à mesa frente a família Lewis. Bill o observou com desdém, não acreditando muito no que ele falava e não crendo mais ainda, que sua mãe o trouxera ao psicólogo local.

— Como eu havia dito previamente, Bill tem estado muito hiperativo... Notas caindo, brigas no colégio...

— Mãe. Eu estou bem aqui do lado — ele não conseguia entender porquê ela estava fazendo aquilo, mas seja lá o motivo, ele estava detestando. — Caramba, mãe! Logo será 2008 e eu terei dezoito anos! Até quando você irá me tratar como uma criança?

O silêncio que havia nesse intervalo de falas era constrangedor, mas o doutor quebrou o gelo.

— Tenho que acompanhar mais de perto. Você é um bom garoto, Bill. Às vezes o estresse do colégio pode os deixar, transtornados — ele acrescentou, defendendo o garoto, mas fazendo algumas anotações. — Te vejo na próxima semana.

Do lado de fora do consultório, Bill iniciou sua maratona de silêncio, sustentando um bico na cara que indicava aborrecimento, mas sua mãe sabia que não duraria muito.

— Não posso levá-lo para o colégio, Bill. Eu tenho que pegar as roupas da senhora Dove para o compromisso dela hoje às onze — no fundo, Bill tinha inveja do tratamento exagerado que sua mãe tinha com a patroa.

— Que merda! Como a senhora quer que eu me saia bem no colégio se eu chego atrasado? — resmungou ele, percebendo estar dez minutos atrasado para o colégio e ir até lá a pé levaria cerca de trinta minutos.

Do lado de fora, ele insistiu mais uma vez, ao ver que o céu anunciava chuva.

— Eu sinto muito filho... — retrucou ela, atendendo em seguida uma ligação e o ignorando como de costume.

— Olha lá! É o Daniel. Pega uma carona com ele — completou, acenando para o homem que conhecia há mais de vinte anos. Daniel era um cara aparentemente normal, mas algo nele fazia o Bill sentir-se repelido.

— Não... Prefiro ir andando...

— Bill Johnson Lewis, não começa — falou sua mãe, enquanto sorria para o homem que estacionava o furgão ao lado da clínica. — Daniel. Que coincidência agradável! Estava pensando em você esses dias. Você precisa aparecer em café para tomarmos um bom café.

— Senhora Lewis. Seria um grande prazer — ele a cumprimentou, virando-se para Bill e sorrindo. Bill conseguia ver uma cárie em seu dente superior, tão escura quanto a pinta que ele tinha no rosto, próximo à boca. — Pequeno, Bill. Como vai?

— Olá, senhor Smith — respondeu ele, brevemente, quase com dificuldades de dizer, puxando a alça da mochila que repousava em seu ombro e olhando no relógio mais uma vez. Ele não estava nem aí se chegaria atrasado, só estava querendo parecer compromissado.

— Ah! O Bill está um pouco atrasado e eu infelizmente tenho que pegar umas coisas para minha patroa antes de viajar hoje à tarde. Você poderia levar o Bill até o colégio, por favor?

Daniel olhou mais uma vez para o garoto e para a senhora Lewis, como se estivesse calculando se havia tempo em sua agenda, mas respondeu.

— Oh! Claro. Não há nenhum problema. Estava indo por aquelas bandas mesmo — disse ele abrindo um grande sorriso e voltando a entrar no carro.

Era uma viagem chata, inquietante e parecia ter levado mais tempo do que o habitual. Bill balançava as pernas como se quisesse sambar, mas só demonstrava sua impaciência.

— Bill... Me conte... Como está indo no colégio? — perguntou Daniel, após dez minutos de puro silêncio, seguido de um suspiro de irritação com o pequeno engarrafamento que se iniciava logo à frente. Eles estavam a uma quadra do colégio.

— Normal — foi o que Bill disse, mas, no fundo, ele fez uma cara como se perguntasse: o que te importa?

— Sabe. Quando eu estudava, os meus colegas costumavam tirar sarro de mim. Eu nunca fui um filho da p**a louco, mas teve uma época que desejei matá-los e decapitá-los e colocar suas cabeças no lugar dos troféus na estante de premiações — Daniel compartilhou seus devaneios internos de maneira lúcida e calma, sem um pingo de expressão ou preocupação.

Bill engoliu em seco, olhando para a trava de segurança da porta do carro e vendo que ela estava destravada e que se ele fosse mais doido que Daniel Smith, puxaria a maçaneta interna da porta e sairia correndo dali o mais rápido possível — mas ele só pensou.

— Isso não é legal... Eu também sou perseguido, mas não desejo matá-los... — Bill falou com mais entonação, agora, olhando para o anel que Daniel tinha no dedo mindinho. Era um grande anel de prata com uma pedra vermelha no centro que lembrava uma bala de cereja, das que Bill costumava chupar no intervalo das aulas. — No mínimo, pregar uma peça neles, sabe como é...

— Bill, você é esperto, mas é muito ingênuo. Eles não se importam com sua integridade. Não se lembra do caso dos Huffman? Aqueles porcos imundos mataram ele engasgado com papel. Era uma brincadeira, não tinham intenção de machucá-lo, mas agora ele está morto, Bill. Você não pensa que porcos como estes mereciam uma lição? A última lição! — Smith falou exaltado. Sua saliva saltava da boca e atingia o vidro e uma bonequinha havaiana que repousava no painel do carro, balançando sua cabeça plástica de um lado para o outro.

— Talvez... — Bill arrumou mais uma vez a mochila que estava agora, posta sobre seu colo e olhou para a porta. — Acho que posso ir andando. O engarrafamento vai demorar muito.

Daniel travou imediatamente as portas e Bill viu a trava deslizar para baixo, como toque de mágica, tão rápida quando sua mão pôde alcançar a maçaneta interna que abriria a porta do carro.

— Eu prometi à sua mãe que te deixaria em frente ao colégio, Bill. Imagine se acontece algo com você neste curto período? Eu nunca me perdoaria por deixar você sair deste carro — as palavras dele deslizaram com naturalidade, enquanto observava atento os outros carros a frente, mas Bill estava desconfortável demais para dizer mais algo, então só resmungou.

— Tanto faz...

Bill segurava a respiração e mal percebia fazer. Costumava fazer quando se sentia incomodado, num reflexo de tensão e medo, mas diferente dos monstros imaginários, Daniel poderia se tornar um monstro real e Bill desconfiava disso.

O carro andou por mais alguns metros e depois que atravessou a biblioteca que havia na esquina, Bill pôde ver lá longe, o colégio. Ele soltou a respiração ao perceber que o carro estava indo para aquela direção. Frente ao colégio, Daniel parou o carro e puxou o freio de mão, trazendo seu corpo para frente e olhando para Bill, com um sorriso conhecido, mas demasiadamente esquisito aos olhos do garoto.

— Chegamos — Daniel destravou as portas, e colocou sua mão sobre a coxa de Bill. O garoto pôde sentir aquele toque quente e frio, algo oximoro. Isso o deixou incomodado. A pedra do anel, que recebia a luz do sol que entrava pela janela, brilhava como diamante, saltando aos olhos dele.

— Valeu — Bill falou rapidamente, levando a mão à maçaneta e abrindo a porta do carro. Bill puxou o ar profundamente, ao sair do automóvel, como se só agora pudesse respirar. Se ele pudesse explicar com uma palavra a sensação que estava sentindo dentro dele, era: nojo.

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