Capítulo 2 - Enclausurada

POR ALGUM TEMPO, a companhia de Costel nos dias extenuantes e nas noites frias de sarjeta bastou, mas logo a necessidade de sobreviver nas ruas perigosas de Bucareste — para onde tínhamos fugido muito tempo depois — começou a criar conflitos entre nós dois. Tínhamos nos tornado dois pedintes em busca constante de abrigo e alimento, o que nos fazia brigar a todo momento.

— Temos que pedir ajuda, Costel.

— Não seja estúpida, Alina! Quem nessa cidade iria nos ajudar?

Sofríamos diariamente para encontrar um teto sobre a cabeça ou mesmo roupas adequadas para suportar a temperatura baixíssima do outono europeu. Feito andarilhos, mudávamos de um endereço para outro logo que as autoridades nos identificavam, e naquele período, encontramos pelo caminho o que de pior a recém-formada Romênia tinha a nos oferecer. Passamos frio, fome e muito medo nas ruas por alguns meses até encontrarmos aquele que parecia ser o esconderijo perfeito na torre de uma velha igreja católica.

Datada do século XVIII, cada pedra das paredes grossas da construção cheirava a suor dos escravos que a tinham erguido. O andar térreo não tinha mais do que vinte metros quadrados e uns poucos bancos de madeira enfileirados diante de um altar decadente e mórbido pareciam esperar por fiéis que quase nunca apareciam.

— O Jesus pregado naquela cruz parece deformado! — ironizou Costel, de olho na imagem feiosa esculpida em madeira ao centro do altar. — O artesão não deve ser dos melhores!

Os degraus que levavam ao alto da torre ficavam na parte de trás da igreja e tivemos que arrombar sua tranca para entrar. O lugar era sujo e escuro, mas as suas paredes de pedra mantinham uma temperatura ambiente em seu interior. Dividimos o espaço inicialmente com ratazanas do tamanho de gatos domésticos, mas na queda de braço, acabamos vencendo os antigos inquilinos.

— Devem dar um belo banquete por alguns dias!

Durante as manhãs, saíamos para pegar restos de comidas nas feiras da província e à noite descansávamos no alto da igreja, protegidos da temperatura baixa que castigava a cidade. Às vezes, lá de cima, ouvíamos toda a ladainha rezada pelo padre em latim, além dos resmungos dos poucos fiéis que frequentavam a missa, mas aquele era um preço baixo demais a se pagar pelo teto que agora tínhamos sobre as nossas cabeças. Que Deus possa nos perdoar de nossos pecados, rogava eu de vez em quando, em voz baixa, ouvindo os sons da cerimônia religiosa, pensando nos atos que tinham conduzido a mim e a meu irmão àquela situação penosa. Mal eu sabia que ainda podia piorar.

Esgotadas as nossas fontes de restos de alimento nos mercados locais, eu e Costel nos vimos obrigados a roubar para nos sustentar, o que criou diversos conflitos com os comerciantes, além de fugas constantes pelas ruas inóspitas. A guarda policial responsável pela ronda na cidade começou a fazer a proteção dos nossos pontos preferidos de assalto e começamos a nos ver sem alternativas. Na situação mais crítica, cheguei a passar uma semana inteira sem ter o que botar no estômago e a morte por inanição passou a se tornar uma possibilidade para nós dois.

Numa das noites mais frias que passamos no alto da igreja, entre um delírio febril e outro pela falta de comida, eu vi Costel sair escondido pela porta pequena de madeira que dava acesso à torre e pareceu um sonho quando ele retornou horas mais tarde me sacudindo no chão sob os trapos que eu usava para me proteger da temperatura baixa.

— Eu consegui um lugar para ficarmos. Estamos salvos.

Meu corpo estava muito fraco pela falta de alimento. Sentia a cabeça girando e os meus dentes batiam pelo frio intenso que estava sentindo. Desci as escadas da torre que davam para o beco atrás da igreja quase a esmo, sem saber bem o que estava fazendo. Sentia a presença de Costel ao meu lado, mas de repente, havia outra voz ali na penumbra, ecoando cavernosa em meus ouvidos sensíveis.

— Ela está muito maltratada, mas nada que alguns dias de descanso e boa comida não a revigorem.

Eu tinha dificuldade para focar tal eram as minhas adversidades físicas e a falta de iluminação do lugar, mas havia um homem alto usando cartola e uma longa capa rubra falando com o meu irmão. Seu rosto não ficava visível em nenhum momento, eu só podia ouvir a sua voz. Tinha cabelos compridos a cair nas costas. Pareciam grisalhos, mas não havia como ter certeza naquela escuridão.

— Você receberá o pagamento como combinado, Grigorescu. Agora permita-me levá-la até o meu castelo.                

Eu tive apenas mais alguns instantes de consciência após aquele diálogo sem sentido à primeira vista, e quando voltei a abrir os meus olhos, sentia como se não o fizesse há meses. Uma nuvem espessa e úmida cobria a minha visão me impedindo de enxergar o entorno de onde eu havia despertado. Sentia um tecido fino sobre a minha pele e via apenas pequenas luzes bruxuleantes à minha volta como velas compridas a iluminar o escuro do lugar.

— Finalmente está entre nós mais uma vez — a voz pegou-me de surpresa. Parecia ecoar de todos os lugares do espaço fechado e de nenhum lugar ao mesmo tempo —, dormiu por quase doze horas seguidas. Deve estar faminta.

Foi como se ele tivesse se materializado à minha frente. Meus olhos voltaram a focar no instante em que a figura de um homem pálido de rosto carrancudo aparentando meio século ofereceu a sua mão para que eu me apoiasse ao me levantar. Um sorriso lânguido escapava-lhe por entre os lábios finos e ressecados. Madeixas grisalhas faziam sombra em seu rosto maduro caindo-lhe em frente aos olhos. Enquanto me incomodava olhar a pele quase transparente das mãos frias do meu anfitrião, notei que eu estivera deitada numa cama muito grande de finíssimos lençóis escuros e que não vestia mais a roupa com a qual fugira naquela noite da fazenda de Grigore.

— Pedi para que as minhas aias lhe dessem um banho enquanto estava adormecida. Dei ordens para que elas se livrassem dos velhos trapos que usava, bela Alina. Quero que fique confortável em sua estadia.

Eu estava numa espécie de aposento de luxo construído com grossas paredes de pedra. Eram impenetráveis até mesmo para a luz do sol ao que parecia. As janelas estavam cerradas com trancas e ferrolhos. A única iluminação naquilo que me parecia um calabouço provinha das dezenas de velas presas aos castiçais. Eu sou uma prisioneira? Me indaguei em pensamento enquanto olhava apavorada o espaço ao meu redor.

— Você não é uma prisioneira, jovem dama.

Como ele consegue ler a minha mente? Voltei a pensar, me arrependendo no instante seguinte em que perguntei.

— Você é minha convidada dentro deste castelo. Desejo que se sinta à vontade para partir caso assim o queira. Até lá, quero que seja bem-vinda.

Aquele homem grande e magro tinha o olhar mais assustador que eu já tinha fitado em minha vida e quando encarei aquelas pupilas que pareciam brilhar num tom carmesim, foi como se ele tivesse me desvendado inteira. Dos pés à cabeça. Aliado a uma vontade muito grande de desabar em prantos, senti um frio percorrer a minha espinha. Como é que eu vim parar aqui?

Durante o jantar oferecido por Dumitri Ardelean, como o homem assustador dizia se chamar, descobri que ele tinha feito um acordo com Costel e que o meu irmão havia me usado como uma espécie de garantia até que ele fosse cumprido.

— Eu fui vendida a você?

Meu tom pareceu rude em excesso e uma empregada corpulenta que me servia um suculento prato de ciorbă de burtă congelou com a concha cheia no ar. Meu estômago roncava. O cheiro da sopa de tripas estava me dando ainda mais fome.

— Por assim dizer, minha cara. — e ele sinalizou para que a serviçal de olhos esbugalhados se retirasse tão logo ela me serviu. O prato dele permaneceu vazio sobre a mesa que se estendia por uns seis metros de comprimento entre nós. Da cabeceira, ele degustava um vinho Bordeaux numa taça de cristal e mais nada. — O senhor Grigorescu quis se certificar que sua bela irmã estaria segura em minha companhia. Ele foi muito bem pago por isso.

Um sentimento de abandono mesclado a ódio me tomou logo em seguida, e em pensamento, eu amaldiçoei Costel. Depois de tudo que tínhamos passado juntos nos últimos meses, não considerava justo que ele me vendesse daquela forma a um total desconhecido. Estávamos famintos, necessitados, mas podíamos dar um jeito na situação, fazê-la melhorar a nosso favor. Não podíamos? Pensei, desolada.

Embora condenasse a atitude do meu meio-irmão, eu continuava morta de fome, o que me fez aceitar sem grande cerimônia os três pratos diferentes oferecidos por Dumitri no jantar. Depois do ciorbă de burtă, veio um delicioso sarmale, fechando com uma saborosa zanusca que me fez lamber os beiços e lembrar da minha mama. Há muito tempo eu não comia de me fartar daquele jeito — não pelo menos desde os banquetes oferecidos por minha santa mãe para festejar as temporadas de muita colheita — e embora fosse desconfortável estar à mesa com aquele homem estranho de pele branco-gelo, eu não podia reclamar de sua hospitalidade, nem da de seus empregados — os oito diferentes que eu tinha contado apenas durante a refeição.

Como se tivesse realmente lendo os meus pensamentos, Dumitri ficou quase que o tempo todo apenas me observando, degustando vagarosamente o seu vinho. Eu estava constrangida. O vestido que haviam me dado era fino demais e deixava muito à mostra com o seu decote profundo. Eu sentia frio, e usando um dos braços, procurei cobrir o volume dos meus seios do olhar indecente daquele homem misterioso. No instante seguinte, o ouvi querer saber mais sobre a vinícola de Grigore.

— Grigorescu mencionou a fazenda do pai de vocês. Conte-me mais sobre ela.

Contei-lhe brevemente o processo desde a colheita das uvas à fermentação do vinho e logo em seguida, ele me deu uma taça do seu Bordeaux para que eu provasse. Voltando a sorrir sem mostrar os dentes, ele disse que encomendaria uma caixa da bebida fabricada por Grigore pessoalmente.

— Não quero que sinta saudades de casa enquanto for minha hóspede, Alina.

Me tremi de cima a baixo quando ele disse aquilo, e mais tarde, após o jantar, quando fui induzida a voltar para meu quarto-prisão e a porta grossa de carvalho se fechou atrás de mim, chorei sozinha em minha nova cama, praguejando Costel por me usar feito uma mercadoria.

Se o encontrar novamente algum dia, arranco-lhe o pau com os meus dentes, jurei a mim mesma.

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